Dona Lucilia no início da década de 1960

“Das coisas mais simples às mais elevadas, do mais carinhoso ao mais decidido”, recorda-nos Dr. Plinio, “mamãe procurava fazer tudo do melhor modo que lhe fosse possível, com cuidado e dedicação, seguindo o exemplo d’Aquele que disse: sede perfeitos…”

Como já tive ocasião de comentar, mamãe manifestava constantemente uma certa tendência para o que há de mais alto, belo e delicado. Assim, por exemplo, quando eu chegava da rua, à noite, e ia cumprimentá-la, a encontrava junto à imagem do Sagrado Coração de Jesus ou no seu quarto, esperando-me para uma “palavrinha”. Ora, no período de tempo que antecedia a minha chegada, tendo ela terminado suas orações e afazeres domésticos, no que mamãe pensava?

Elevação ao tratar de assuntos corriqueiros

Não saberia dizer com exatidão, mas eu notava que o espírito dela se desprendia de altas regiões do pensamento para me acolher e conversar comigo. Naquele colóquio, ficava-me uma impressão semelhante à que teria uma pessoa a qual, após ter passeado no cimo de uma montanha onde houvessem árvores floridas e perfumadas, descesse de lá e percebesse que todos os seus trajes estavam impregnados do aroma daquelas flores. Assim também eu tinha a sensação de que todo o espírito de mamãe ficava embebido do perfume das coisas em que ela tinha pensado.

É preciso salientar que eu não me apresentava para essas conversas com ela tendo alguma intenção prévia. Minha disposição era a de ser o Plinio, seu filho, inteiramente espontâneo, dizendo-lhe o que me apetecesse no momento. Ainda que se tratasse de coisas insignificantes, qualquer fato corriqueiro do dia-a-dia que me tivesse acontecido. E eu notava que mamãe procurava entrar naquele assunto banal com a mesma elevação com que, até há pouco, dedicara suas cogitações a temas mais altos. Ela imergia naquele pequeno episódio e como que o iluminava com sua nobreza de espírito.

Então se interessava pelo par de sapatos novos que eu tinha comprado, pelos meus trabalhos no escritório, pela minha consulta ao dentista e por outros fatos de menor importância que, no meu entender, deixavam de ser triviais pelo modo como ela os considerava.

Esmero no escolher presentes para os filhos

O mesmo se poderia dizer do modo pelo qual ela cuidava dos assuntos de casa, conferindo-lhes aquela sua nota característica de bondade e delicadeza de alma.

Por exemplo, quando preparava os presentes de Natal para os dois filhos, em geral brinquedos comprados nas melhores lojas do gênero então existentes em São Paulo. Até atingirmos certa idade, mamãe costumava pedir à nossa governanta, Fräulein Mathilde, que nos levasse a essas lojas e nos fizesse escolher os nossos brinquedos favoritos, dizendo-nos em seguida: “Agora rezem a São Nicolau, e peçam a ele que lhes traga esses presentes”.

Claro, crianças que éramos, acreditávamos naquela afetuosa combinação, e nos dirigíamos à loja de brinquedos contentes e ansiosos, esperando que São Nicolau nos fosse favorável. No dia de Natal, nossa alegria era completa ao vermos que tínhamos sido atendidos…

Mas, além desses presentes, mamãe se comprazia em confeccionar, ela mesma, outros brinquedos para nós, especialmente para minha irmã, pelo fato de ser mais fácil elaborar algo que agrade a uma menina. Lembro-me, por exemplo, de vê-la trabalhar num enfeite para abajur que era uma espécie de guirlanda formada por figuras femininas de mãos dadas, como se fossem várias meninas dançando ao som de uma música em torno, digamos, de um chafariz.

“Mamãe se comprazia especialmente em preparar com carinho nossos presentes de Natal ou em confeccionar, ela mesma, peças de roupas para nós”

Fotos: Arquivo revista
Fotos: Arquivo revista

Essas silhuetas eram inspiradas em gravuras que mamãe colecionara de revistas brasileiras ou de figurinos franceses. Depois de as recortar e colar, ela ainda as pintava com purpurina, dando relevos dourados e outros adornos. Por fim, decorava o abajur e dava de presente à filha. Aquilo lhe tomara tempo e empenho, às vezes até altas horas da noite, mas era de admirar a perfeição e o cuidado com que mamãe se entregava à tarefa. E, a meu ver, o melhor dessa perfeição estava no fato de que, com o passar do tempo, as figuras perdiam aderência no abajur, se descolavam, caíam, e o objeto tornava-se feio. Dona Lucilia então se desfazia de tudo: “Acabou-se, não tem mais beleza, e a perfeição agora consiste em pensar noutra coisa. Isso fica para o passado. Pensemos no futuro.”

Fotos: Arquivo revista
Na página 8: Rosée e Plinio por volta de 1912; à esquerda e abaixo: antigas e conceituadas lojas de brinquedos no centro de São Paulo

Sempre o melhor possível

Quer dizer, desde o mais delicado e mais carinhoso, até o mais firme e mais decidido, mamãe procurava fazer tudo do melhor modo que lhe fosse possível. Outro exemplo é a maneira como ela se dispunha a animar a vida de família.

Vivíamos em casa de minha avó, mãe dela e matriarca dos Ribeiro dos Santos, numa dependência especialmente reservada para nós. Contudo, em se tratando de uma casa muito grande, era natural que mamãe se dedicasse a ajudar vovó nos cuidados domésticos, supervisionando os criados, a manutenção da despensa, verificando as contas e coisas do gênero.

Além disso, com o auxílio da Fräulein, ela costurava e fazia certas peças de roupa para nós, não por se sentir obrigada, mas porque gostava e desejava, por afeto, que usássemos algo confeccionado por ela. E com razão: uma coisa é o filho usar uma gravata comprada na loja, outra é envergar aquela cortada com carinho por sua mãe. E tudo levado a cabo com tal capricho que pensávamos: “Não era possível fazer, nesse caso, nada melhor do que ela fez”.

Sejamos perfeitos como Deus é perfeito

Esse anelo de perfeição era tão característico de mamãe que eu, acostumado a pôr-lhe apelidos — sempre respeitosos e afetuosíssimos —, durante algum tempo a chamei de Lady Perfection, isto é, Senhora, Madame ou Dona Perfeição. E quando eu me referia a ela por essas alcunhas carinhosas, ela demonstrava grande contentamento. Diante do quê, meu pai, homem de muito bom gênio, olhava para ela e dizia, arremedando o sotaque português:

— Não te derretas…

Queria observar, com esse gracejo, que ela por pouco não se desmanchava de satisfação com os meus agrados. Mamãe lhe respondia com uma fisionomia séria, eu dizia outras afabilidades para ela, e nesse trato ameno terminavam nossos encontros.

Tomo a liberdade, porém, de encerrar esses comentários e reminiscências com um conselho que, parece-me, vem a propósito. No célebre Sermão da Montanha, Nosso Senhor se exprimiu desse modo que nos surpreende: “Sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48).

Ora, o Pai celeste é a Primeira Pessoa da Santíssima Trindade e, portanto, é Deus. “Sede perfeito como Deus é perfeito”, seria pedir ao homem algo impossível. Então os exegetas explicam: “como” não significa aqui ser igual ou tanto, mas à maneira de. O sentido da frase de Nosso Senhor é este: sede perfeitos segundo o exemplo de vosso Pai celeste; Ele é o modelo, procurai imitá-Lo”.

Sendo assim, peçamos a Nossa Senhora, Filha perfeita e diletíssima do Pai celeste, que nos alcance uma perfeição semelhante à d’Ela, para, desse modo, atendermos ao apelo do divino Mestre.

(Extraído de conferência em 10/9/1994)