Dr. Plinio durante uma conferência.

Na série de exposições a respeito de seu livro “Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana”, Dr. Plinio teceu os seguintes comentários.

Pio XII possuía um hábito que se perpetuou através das suas várias alocuções: nunca começá-las sem dizer palavras de gentileza, marcadas por uma preocupação literária especial. Essa característica transparece nas primeiras palavras de sua alocução ao Patriciado e à Nobreza romana1 de 9 de janeiro de 1958:

Com vivo agrado, diletos filhos e filhas, vindos para reafirmar a devota fidelidade a esta Sé Apostólica, acolhemo-vos na Nossa casa, ainda penetrada dos santos eflúvios das festividades natalinas.

Por ocasião das festas de Natal, a Nobreza costumava visitá-lo, para apresentar votos de felicidade como ocorre entre católicos, máxime entre o Pai de todos os católicos, que é o Papa, e aqueles católicos exímios, de alta condição, como eram os membros do Patriciado e da Nobreza romana.

Como Pai supremo de todos os católicos do universo, como Bispo da Arquidiocese de Roma, de um modo especial ele se desvela por aqueles que representam a longa tradição do Patriciado e da Nobreza romana. Recebendo manifestações de fidelidade e de devotamento, por ocasião da passagem do Natal, é natural que, como bom Pai, ele responda com palavras de afeto, de esperança e indicando diretrizes.

Todo mundo que se acerca de um Papa quer receber dele uma diretriz, uma palavra de orientação; é o presente específico que se pede a um Soberano Pontífice. É claro que ele o dá com especial abundância a essa Nobreza tão considerada.

À esquerda, Pio XII durante a proclamação do Dogma da Assunção de Maria; à direita, fieis pervadem a Praça de São Pedro na mesma ocasião.

A amabilidade no trato de outrora

No tempo em que eu era jovem e formei meu espírito, parecia tão evidente que o trato de uns com os outros deveria ser assim, que nem me passou pela cabeça fazer maiores explicações sobre essa praxe, dando-lhes oportunidade de saborearem melhor o estilo oratório daquela época, que já não é de hoje, mas que conserva para nós lições nesta ordem de coisas.

Entretanto, para algumas pessoas essa introdução não quer dizer nada. Uma coisa con la quale o senza la quale il mondo va tale e quale — uma coisa com a qual ou sem a qual o mundo anda tal e qual. Isso não é verdade.

As puras fórmulas de gentileza, de amabilidade e de afeto na vida social têm grande importância. Na medida em que a Revolução vai avançando, essas fórmulas — que no passado foram tão mais ricas e bonitas do que as usadas por Pio XII — foram desaparecendo. Pio XII era o continuador de um passado muito mais florido do que os dias dele, do que os meus dias.

Alguém dirá: “Mas afinal de contas vê-se que isso não é senão gentileza.”

Pode ser apenas gentileza, mas o fato de uma pessoa fazer uma gentileza para outra, indica, de qualquer maneira, uma disposição de alma melhor do que se não a fizesse. Assim, a secura de um “como vai?” não substitui, nem um pouco, uma fórmula mais elaborada. As fórmulas de tratamento têm grande importância na vida.

Estou com um amigo, aproxima-se outro amigo que não conhece o primeiro. O amigo que chega me cumprimenta e fica esquisito não saudar aquele que está comigo. Eu então os apresento, dizendo seus nomes: “Fulano de Tal e Sicrano”. Os dois apertam suas mãos e um deles diz: “Prazer em conhecê-lo”; o outro responde “Igualmente”, ou alguma outra fórmula semelhante.

Isso não quer dizer que o indivíduo ao qual se apresenta o outro — chamado, digamos, Fulano dos Anzóis Carapuça — queira afirmar: “Que coisa extraordinária! Estou conhecendo o Fulano dos Anzóis Carapuça!”

“Muito prazer em conhecê-lo” quer dizer: eu sorrio, introduzindo-o nesse momento na roda dos meus conhecidos, sinto gosto em, por minha vez, entrar no circuito dos seus conhecidos; vamos travar relações cordiais.

Imaginemos a pompa pontifícia no tempo de Pio XII: o Papa vem na sedia gestatória, senta-se numa poltrona em estilo elevado, toda dourada, sobre um estrado, e começa a falar.

No tempo em que eu era moço, o “prazer em conhecê-lo” entre dois muito jovens que se apresentassem um ao outro, pronunciava-se mecanicamente. Hoje, quanto mais nova a geração, mais raros são os que usam essa fórmula.

A beleza de formas e de palavras suaviza a vida

Devemos imaginar como era a pompa pontifícia no tempo de Pio XII: o Papa vem na sedia gestatória, senta-se numa poltrona em estilo elevado, toda dourada, sobre um estrado, e começa a falar. Antes ele foi saudado pelo representante dos nobres ali presentes; depois responde a essa saudação.

O primeiro pensamento contido na frase inicial é este: “Vós estais aqui no Palácio Vaticano, que é a casa do Papa. Eu tomo conhecimento da finalidade de vossa visita.”

Essa expressão “tomo conhecimento da finalidade de vossa visita”, tão rasa, quase como um carimbo, não orna a vida social. Para dizer isso, ele usa a fórmula “com vivo agrado, diletos filhos e filhas”.

Se ele dissesse apenas “agrado” seria um pouco vazio. “Vivo agrado” significa um agrado que tem vitalidade.

Quer dizer, ele começa a alocução por um ato de amor, de afeto para com aqueles nobres. Isso vai pondo à vontade as pessoas que estão sendo recebidas.

A finalidade da visita foi reafirmar a fidelidade à Sé Apostólica. Mas Pio XII acrescenta “devota fidelidade”, para dar a entender que não é uma fidelidade qualquer, comum, mecânica, mas feita com o coração.

Poder-se-ia perguntar: “Para quê entrar em todos esses detalhes?”

A fim de se compreender bem quanto pensamento tem que ser mobilizado para fazer uma saudação, que parece um lero-lero, mas não é. Para a correspondência de uma oficina mecânica basta dizer: “Senhor, a sua conta desse mês é tanto”; mas para o trato social de alta qualidade do Sumo Pontífice com a Nobreza de sua diocese convém essa beleza de formas, de palavras. Isto suaviza a vida.

As belas maneiras fazem parte da civilização

Continua o Santo Padre:

Com ânimo de pai, ansioso de cercar-se do afeto dos filhos, condescendemos de bom grado ao vosso desejo de ouvir uma vez mais algumas palavras de exortação, em resposta aos votos há pouco a Nós dirigidos pelo vosso exímio e eloquente intérprete.

Tenho impressão de que se fizermos hoje uma testagem com homens entre cinquenta e sessenta anos de idade, pelo menos cinquenta por cento — não sei se haverá pessimismo no meu cálculo — não saberão interpretar esse trecho.

O intérprete era, em geral, um príncipe da Nobreza romana o qual dizia ao Papa, num discurso reverente, o que lhe ocorria pelas circunstâncias. Ao responder, o Papa nunca deixava de mencionar, com destaque especial, o intérprete, dizendo tratar-se de um personagem eminente, que desempenhou nobremente sua tarefa.


Seria realmente bruto receber uma saudação de alguém que deitou seu empenho, declarou seu nome, e o saudado agradece, mas não fala de quem o saudou. Então o Papa diz uma palavra amável para o intérprete, usando a expressão “exímio e eloquente intérprete”.

Cerimônias Pontifícias no tempo de Pio XII.

O intérprete foi exímio, ou seja, falou bem, de maneira a dar entusiasmo ao auditório. Eloquente é algo que se acrescenta ao exímio: teve aquele dom de palavra que empolga e arrasta os outros. Equivale a dizer que a saudação foi perfeita.

Dois adjetivos só: exímio e eloquente. Passaram como se uma bênção do Papa pairasse sobre o intérprete. O agrado estava feito.

O homem de hoje, de um modo geral, não entende, entende mal e mal, não gosta, não compreende a necessidade de tudo isto.

É a civilização que se vai apagando. As belas maneiras fazem parte da civilização, dão sabor à vida.

A preocupação constante do homem civilizado

A alocução prossegue:

A presente audiência desperta no Nosso ânimo a recordação da primeira visita que Nos fizestes no longínquo 1940. Quantos dolorosos desfalques, desde então, nas vossas eleitas fileiras; mas, também, quantas novas e formosas flores desabrochadas no mesmo canteiro!

Ou seja, quantos morreram! É claro que tinham de morrer, passado tanto tempo. Morre gente e nasce também.

Vejam como ele floriu suas palavras. Compara a vida a um canteiro no qual murcham e morrem plantas, nascem e desabrocham flores. É uma bonita comparação.

Faire beau, fazer bonito deve ser a preocupação constante do homem civilizado. O homem puramente feito para a prática já está caminhando para fora da civilização.

Que impressão teríamos se ele, em vez de dizer isso, afirmasse: “Caramba! Quanta gente morreu! Também, em compensação, nasceu gente.” Uma frase tão seca, sem propósito; seria melhor ficar quieto.

Sábios conselhos de um zeloso pai

Depois da saudação, o Papa entra no tema:

A lembrança comovida de uns e a risonha presença de outros parecem encerrar numa ampla moldura todo um quadro de vida que, embora transcorrida, não deixa de proporcionar salutares ensinamentos e de irradiar luzes de esperança no vosso presente e futuro.

Enquanto aqueles de “fronte emoldurada de neve e de prata” — assim nos exprimíamos então — passaram à paz dos justos, ornados dos “muitos méritos adquiridos no longo cumprimento do dever”; outros, “animados pela flor da juventude ou pelo esplendor da maturidade”, ocuparam ou ocupam o seu posto impelidos pela incontenível mão do tempo, por sua vez guiado pela próvida sabedoria do Criador.

(…)

Pois bem, àqueles pequeninos de então, no presente jovens ardorosos ou homens maduros, desejamos dirigir, antes de tudo, uma palavra, como a abrir uma fresta no íntimo do Nosso coração.

(…)

Quem se acerca de um Papa quer receber dele uma diretriz, uma palavra de orientação; é o presente específico que se pede a um Soberano Pontífice.

Estamos certos que vós, mesmo quando as vossas frontes estiverem emolduradas de neve e de prata, sereis testemunhas não só da Nossa estima e do Nosso afeto, mas também da verdade, fundamento e oportunidade das Nossas recomendações, como dos frutos que delas queremos esperar para vós mesmos e para a sociedade.

Recordareis particularmente aos vossos filhos e netos como o Papa da vossa infância e juventude não se omitiu de indicar-vos os novos encargos impostos à Nobreza pelas novas condições dos tempos; que, ao contrário, muitas vezes vos explicou como a operosidade teria sido o título mais sólido e digno para assegurar-vos a permanência entre os dirigentes da sociedade; que as desigualdades sociais, ao mesmo tempo que vos davam realce, prescreviam-vos deveres específicos ao serviço do bem comum; que das classes mais elevadas podiam descer para o povo grandes vantagens ou graves danos; que as transformações nas formas de vida podem, onde quer que seja, harmonizar-se com as tradições, das quais as famílias do Patriciado são depositárias.

Esse já é o tema.

Isso tudo para dizer o seguinte: “Vós deixareis — nas vossas memórias, que contareis e escrevereis — recordações das audiências anuais que vos dou. Nessas recordações ficará claro, para o futuro, que o Papa atual cumpriu seu dever, proporcionando cada novo ano a palavra de ordem que a Nobreza procurava.”

As convulsões decorrentes da IIª Guerra Mundial produziam muitos desconsertos: abalos de situações, gente rica que ficava pobre, gente pobre que ficava rica etc. Para a Nobreza isso trazia dificuldades especiais, porque muitos nobres empobreceram; mas também possibilidades neste ponto: ainda que ficasse pobre, se fosse trabalhador digno, operoso, e não vivesse no ócio, o nobre garantiria para a sua classe uma continuação do passado.

Quer dizer, o fato de se ver que toda a Nobreza, às vezes em condições modestas, trabalhava perfeitamente, era um meio de mantê-la respeitável.

O fundo desse pensamento poderia ser assim formulado:

Consideremos uma classe de trabalhador manual, a dos ascensoristas, cuja função não parece especialmente difícil: estar de pé dentro de um elevador, apertando aqueles botões para fazê-lo subir e descer.

Trata-se de uma profissão humilde, cujo trabalho é manual; a parte intelectual do trabalho do ascensorista é tão pequena que a bem dizer não existe.

Até mesmo um homem de alta condição social que, pelo infortúnio das circunstanciais econômicas favorecidas por fatores adversos, ficava arruinado, caso exercesse essa função com dignidade, sem espalhafato, não se preocupando em insinuar ser nobre, mas tendo a noção de que o era, acabaria fazendo-se respeitar por todos aqueles que o vissem. E se soubessem que ele era o Príncipe Tal ou Duque Tal, os próprios passageiros diriam entre si: “Psit! Príncipe Tal, Duque Tal.” Vendo a dignidade dele, todos o tratariam com respeito.

As tradições aristocráticas podem harmonizar-se com uma profissão mesmo humilde, desde que o nobre tenha consciência disso.

Quer dizer, o Papa indicava à Nobreza como reagir diante dos extremos da pobreza, continuando a ser uma classe respeitada. Esse é o pensamento.

(Extraído de conferência de 27/1/1995)

1) Publicado em Portugal no ano de 1993; foi também editado em espanhol, francês, italiano.