Dona Lucilia em 1912.

Com voz suave e tons profundos, Dona Lucilia modelava as almas das crianças através de suas narrações. De certo modo, foi assim que ela escreveu na alma de Dr. Plinio as primeiras linhas de “Revolução e Contra-Revolução”.

No tempo em que formei o meu espírito, a Revolução insistia muito num ponto péssimo, no qual ela hoje não insiste porque julga ter ganhado todas as almas, vencido a batalha. Quando eu era jovem, a batalha estava quase ganha, mas ainda restava alguma coisa que resistia à Revolução.

A ideia era a seguinte: A bondade consiste fundamentalmente em não causar dissabor, tristeza, má disposição de alma em ninguém. Assim, tudo aquilo que representasse autoridade, era de alguma maneira contrário à bondade. Isto porque a autoridade faz cumprir a lei. Ora, toda lei contraria em algo a alguém. A autoridade é, portanto, uma espécie de instituição cuja finalidade consiste em contrariar e fazer sofrer os outros. Logo, o mundo ideal seria aquele em que não houvesse a autoridade. Seria o mundo perfeito da bondade.

A autoridade impede que os maus atormentem os bons

Primeiramente, não é verdade que a autoridade tenha por fim fazer sofrer. Pelo contrário, o mundo seria um inferno se não houvesse autoridade que impedisse os maus de atormentarem os bons. É porque existe autoridade que os ladrões não podem roubar, ou roubam o menos possível; os assassinos têm medo de matar. Por exemplo, é possível circular sossegado pelas ruas porque há leis de trânsito e existem autoridades incumbidas de fazer cumprir essas leis. Do contrário, ou não se usariam veículos, e os homens eram obrigados a andar a pé, ou os veículos estariam matando gente a todo momento.

Quer dizer, a autoridade existe para o cumprimento das leis e a proteção dos bons. Ela é amiga dos homens, e não inimiga. Ela os faz sofrer — isto é uma coisa diferente — em razão do pecado original.

Depois do pecado original, o homem ficou com os seus sentidos desregulados e querendo a toda hora coisas que não deve querer. E a autoridade se opõe a que o homem faça o que não deve. Portanto, em certo sentido a autoridade tem uma presença desagradável. Porém, se imaginarmos uma sociedade sem autoridade compreenderíamos como sua presença é deleitável.

Num colégio, por exemplo, a autoridade tem que se fazer sentir muitas vezes. Quando eu era menino, adotava-se o seguinte sistema: se o aluno conversasse, o professor o mandava ficar junto a um canto das paredes, de costas para os colegas, durante quinze minutos, meia-hora, ou a aula inteira, conforme a malandragem que tivesse praticado.

Havia cem outras coisas que realmente faziam o aluno sofrer. Se este vê as coisas superficialmente, fica inimigo da autoridade. Porém, se as olha mais a fundo, compreende que a autoridade é uma grande proteção para ele.

O corrimão de uma escada

Temos o exemplo mais concreto disso no corrimão de uma escada.

É frequente encontrar meninos que gostem de descer pelo corrimão de uma escada, em vez de fazê-lo pelos degraus. Se o corrimão é bem liso e se presta a isso, ele vem escorregando desde cima até embaixo. Pode-se achar graça, mas é uma imprudência. Se ele cair de certa altura, poderá quebrar a espinha e ficar paralítico durante toda sua vida. Se ele tem dez anos, e viver até os noventa, passará oitenta anos deitado numa cama, à espera da libertação da morte, porque não considerou a autoridade que obrigava a respeitar o corrimão.

A autoridade faz o papel de um corrimão na vida. Em todos os sentidos da palavra a autoridade é um corrimão: ajuda a encaminhar, proteger as pessoas. Tudo isto torna a autoridade apresentável, agradável, como acontece com o corrimão bem construído, bonito.

Voz com inflexões suaves e tons profundos

A arte de educar consiste em formar a criança fazendo com que veja o lado razoável da autoridade, o aspecto bonito da hierarquia, a fim de amar ser mandada, obedecer. Assim, ela se torna amiga da Contra-Revolução em vez de ficar amiga da Revolução.

A atitude de minha mãe em face desse problema era a seguinte:

Sua voz, embora não fosse de cantora, era muito agradável para conversa, cheia de inflexões. E inflexões muito suaves, doces, que correspondiam aos movimentos do temperamento dela, e diziam o que queriam dizer. Por causa disso tinha também tons muito graves, profundos, que não eram de pito, mas para fazer ver a gravidade, a seriedade do que ela estava dizendo. O temperamento dela era capaz de uma grande seriedade e, falando, ela normalmente tomava muito a sério tudo aquilo que ela dizia. E, quando mencionava qualquer autoridade, ela falava com certo respeito e tinha um modo de entoar a voz, fazendo-nos sentir por que e de que jeito aquela autoridade era respeitada.

Veneração para com o sacerdócio

Por exemplo, o modo de mamãe se referir a um padre.

Meu pai tinha um primo-irmão que era sacerdote; chamava-se Cônego Luís Cavalcanti. Homem muito inteligente, ele ficara solteiro até tarde e, em determinado momento resolveu ficar padre e ordenou-se na Arquidiocese do Rio de Janeiro.

Ele mantinha muito boa conversa e às vezes vinha a São Paulo, sendo então convidado à nossa casa para almoçar ou jantar; compareciam também parentes de minha mãe para ouvir as palavras desse primo de meu pai. E faziam bem, porque ele era sacerdote e sustentava discussões com alguns meus tios, que eram ateus. Nessas discussões ele serrava de cima pela sua cultura, inteligência, com certa polidez e amenidade. De maneira que esses tios incrédulos até gostavam de entregar os pontos e davam risada; o padre, quando os encostava na parede, também ria de um modo amável; e aquilo tudo constituía uma conversa muito afável. Porque era muito menino, eu não entendia bem os temas das discussões, mas gostava de observar o jogo das fisionomias, os tons de voz, as atitudes das pessoas.

Minha mãe tinha um irmão muito inteligente, o qual fazia para o sacerdote perguntas muito provocantes. Eu olhava para o padre e pensava: “Dessa vez parece que ele está na parede.” Ele ouvia com toda a calma e dizia: “O senhor sabe, isto precisa ser visto num enfoque diferente”; o sacerdote mudava a questão, colocava-a no ponto certo e meu tio levava o tiro.

Quando Dona Lucilia falava desse parente, nunca o fazia sem uma inflexão de voz para dar a entender que, além de ser um primo do marido dela — portanto, primo dela também —, era um padre da Igreja Católica. Ela jamais dizia “o primo Luís”, mas “o Padre Luís”; e, posteriormente, quando ele ficou cônego, “o Cônego Luís”. No modo de ela dizer “Padre Luís” ou “Cônego Luís”, as palavras padre e cônego tomavam uma inflexão de voz que exprimia toda a sua veneração pelo homem superior a ela porque era consagrado a Deus.

Por causa disso, ela possuía para com ele solicitudes, atenções, que não tinha para com parentes muito mais ricos. Esse padre não era rico, mas isso para ela não queria dizer nada. Realmente, em se tratando de um sacerdote, isso não importa; ele é um ministro de Deus.

O modo de mamãe dizer “padre”, de se referir a ele, de tratá-lo, as atenções especiais para com ele, o verdadeiro afeto, porque, além de ser um parente, era um sacerdote, fazia a criança aprender o que era um padre, antes de compreender a doutrina católica sobre o sacerdócio. Dessa forma, o coração ficava pronto para receber o que a Fé haveria de dizer depois, pelo ensinamento da Igreja.

Soberano belga e sua esposa, a Rainha Elizabeth; em destaque, Rei Alberto da Bélgica.

Visita dos Reis da Bélgica a São Paulo

O mesmo sucedia quando se tratava de pessoas mais altas na escala social.

Lembro-me de que, quando eu tinha doze anos, o Brasil foi visitado pelo Rei e pela Rainha da Bélgica. Próximo a nossa casa havia uma espécie de palácio — que hoje é um colégio, numa área chamada Chácara do Carvalho —, pertencente a um alto personagem: Conselheiro Antônio Prado. No momento dessa visita, ele era Prefeito de São Paulo. Homem individualmente riquíssimo, Antonio Prado resolveu oferecer uma grande festa, em honra ao Rei e à Rainha da Bélgica.

Os jornais indicavam o caminho que os soberanos iriam seguir; passariam em frente a nossa casa ao se dirigirem para a Chácara do Carvalho.

Eu estava me restabelecendo de uma gripe e não podia ainda sair do meu quarto. Mamãe disse-me: “Olhe, tal hora o Rei e a Rainha da Bélgica vão passar por aqui de automóvel, junto com o Presidente da República e a Primeira Dama. Depois passará a dama de honra da Rainha, que é a Condessa de Caraman-Chimay. Quero que você aprenda a ver como são personagens assim. Fique nessa hora em pé junto da janela com a vidraça fechada; estarei ali para lhe mostrar e ajudar a analisar.”

Essas são formas de dedicação que se tornaram pouco frequentes em nossos dias, mas ela as possuía em abundância.

Recordo-me que, por uma razão qualquer, o automóvel do Rei e da Rainha, bem como o do Presidente da República, passou depressa; quase não pude vê-los. Mas o carro da Condessa de Caraman-Chimay trafegou bem devagar, e até hoje conservo na retina a recordação da cena.

Uma figura de conto de fadas

No automóvel fechado — uma limusine daquele tempo —, ela estava sentada bem no meio, sozinha, com um vestido de gala e portando sobre a cabeça uma coroazinha de ouro, correspondente a sua alta condição. Era condessa, mas de uma família meio principesca, e por isso tinha ela direito ao uso daquela coroa. A limusine estava bem iluminada, e do cabelo da Condessa descia uma espécie de tule muito leve. A luz do automóvel e o ouro da coroa brilhavam naquele tule, e ela, sentada impávida, sem olhar para a direita nem para a esquerda, parecia uma estátua.

Mamãe disse-me: “Meu filho, aquela é a Condessa de Caraman-Chimay.”

Ela passou diante de meus olhos como uma figura de contos de fada.

Pelo modo de mamãe falar, notava-se que ela respeitava a Condessa, indicando que devia haver pessoas representando esse papel. Ela não era condessa, mas gostava de mostrar como a outra era superior e amava esta superioridade de direito. Era amiga de todas as superioridades.

Ela me ajudou muito a formar o senso contrarrevolucionário, precisamente por esta forma: narrando, falando, sem dar teorias, mas modelando as almas das crianças de todos os modos possíveis.

Cada superior é uma luz que ilumina nossa vida

Lembro-me bem da atitude dela quando em casa havia discussões sobre personagens políticos. Como acontece nas democracias, falava-se dos chefes de Estado debandadamente. Ela não!

Mesmo quando Mamãe fazia críticas a certos políticos, notava-se que ela não esquecia tratar-se de um chefe de Estado e, portanto, ele precisava ser tratado com consideração, ainda que pessoalmente não o merecesse. Sendo chefe de Estado, era superior. Deve-se compreender porque ele é superior e amar aquele estilo de superioridade.

Isso se fazia sentir também no modo como ela se referia aos meus professores.

Meus primos eram meus colegas de escola; tínhamos, portanto, os mesmos professores. Eles falavam mal dos mestres, davam-lhes apelidos etc.

Pelo contrário, Dona Lucilia dizia: “O professor tal — considerem que eram professores secundários e não universitários! — tem tal missão e deve esclarecer o seu espírito a respeito de tais e tais coisas. Respeite-o!”

Assim, mamãe ia me fazendo compreender que a posição natural do homem é considerar cada superior como uma luz acesa nas perspectivas dele, e deve ficar contente porque aquela luz ilumina sua vida sob diversos pontos de vista.

Isto valia muito com relação às autoridades dentro da família.

Mamãe respeitava muito as pessoas de sua família, mesmo aquelas que ela não havia conhecido. E quando contava aventuras de pessoas que não conhecera, ela o fazia de modo a incutir respeito por essas aventuras.

Plinio e sua irmã Rosée.

Escrevendo as primeiras letras de “RCR”

Mamãe às vezes contava esses episódios para seus filhos — eu e minha irmã — e também seus sobrinhos: formava-se uma roda de criançada em torno dela para ouvir as histórias. Ela o fazia com tanta vida, sabia de tal maneira interessar as pessoas pelas narrações, que todos ficavam estupefatos.

E Dona Lucilia sempre mostrava a importância da autoridade. Todos os personagens sobre os quais ela contava se respeitavam, eram amáveis uns com os outros, gentis, dando uma ideia da vida corrente como há muito não mais existia.

Ela me ajudou muito a formar o senso contrarrevolucionário, precisamente por esta forma: narrando, falando, sem dar teorias, mas modelando as almas das crianças de todos os modos possíveis. E sempre na linha do amor à hierarquia e à gradação em todas as coisas.

Tudo isso me levava a comparar as cenas que eu via no cinema de Hollywood, aquela história de cowboy, e outras coisas que eram a ultramoda para os meninos de então — que eu achava um horror. E me conduzia a fazer o confronto entre a sociedade baseada no respeito, diferente das sociedades fundadas na igualdade; bem como à compreensão instintiva do que uma igualdade absoluta e uniforme tem de achatante, e o que há de belo, iluminado, dignificante — numa palavra, de católico — numa sociedade com desigualdades.

Num certo sentido figurativo da expressão, as primeiras letras de “RCR”1 foram escritas por ela.

(Extraído de conferência de 13/3/1993)

1) O livro “Revolução e Contra-Revolução”.