Cochem às margens do Rio Mosel, Alemanha

O modo de ser de um povo está relacionado com o cenário da natureza em que ele vive. A graça divina conserva tudo aquilo que um povo possui de bom, eleva-o e orienta-o para se tornar cada vez melhor; sua força geradora de costumes é incomparável.

Vamos pegar o costume no seu nascedouro: suponham que houvesse, de repente, um deslocamento qualquer da Terra e o clima alemão passasse a ser sensivelmente diferente. Por exemplo, dado a quente, um clima mediterrâneo.

O costume ou é regional ou não existe

Como o povo todo está muito unido numa mesma mentalidade, constitui neste sentido uma família de almas, a mudança de clima haveria de atingir a vida particular dos indivíduos, mais ou menos do mesmo modo, mas as reações dos indivíduos a essa alteração que tivesse se passado seriam idênticas ou afins, por causa da grande conaturalidade de uns com os outros. E seria uma reação, tomada em nível individual e familiar, que atenderia todas as percepções da vida individual e familiar nessa nova situação.

Se fosse um povo razoável, não trabalhado pela verminose de mil preguiças nem pelas descargas nervosas de mil torcidas, mas de um fluxo vital normal, sentiria os problemas e iria ajeitando aos poucos, em parte se adaptando, em parte adaptando as coisas a si, e levaria uns vinte ou trinta anos até se conformar à situação nova.

Nesse povo, cada indivíduo se adapta com um conhecimento meticuloso e profundo da sua situação pessoal e de sua família. E isto feito numa região inteira, com os recursos que eles vão utilizando para fazer face àquilo, e surge uma solução que nenhum instituto oficial poderia encontrar, nem professor universitário seria capaz de fazer daquele jeito. Pela colaboração de milhares de pessoas, instintivamente, para resolver uma determinada dificuldade, auscultando cada um a si e também os outros, ninguém querendo romper para uma solução genial individual, mas compreendendo que deve estar no ritmo de uma solução coletiva; então, o povo vai adaptando, adaptando, adaptando a ponto de dar uma obra-prima.

Mirabella (CC3.0)
Rochedos da Ilha da Córsega

Serve de exemplo para isso um queijo famoso da Córsega, para cuja composição são utilizadas duzentas ou trezentas ervas. Como chegaram a conhecer essas ervas e obtiveram um tipo perfeito de queijo? Evidentemente, diante de uma natureza pobre, com aquelas montanhas, às apalpadelas, uma região inteira foi à procura de uma fórmula. E houve bastante nobreza de espírito para que cada um, inventando uma coisa nova, os outros soubessem que era melhor ou não, e fizessem uma seleção. E disto nascesse um costume a respeito de queijo.

Mas isso que se dá com o queijo, ocorre com o traje, a construção, o cântico, os sistemas de educação regionais; tudo isso nasceu do costume assim. Trata-se de uma obra-prima que nenhum gênio humano é capaz de fazer.

Eles não têm gênios aos borbotões; seria uma hipertrofia e uma desgraça para a nação. Eles possuem pessoas de um bom quilate individual, inteligentes, as quais esperneiam, sabem se meter, que é uma coisa prodigiosa. É um grande povo tecendo ao longo dos tempos seus costumes.

O costume não deve ser, portanto, visto em escala de nação, e sim de região. O costume ou é regional ou não existe.

Se não tivesse nascido a Civilização Cristã, nós não teríamos isso, que é do homem cristianizado.

Flávio Lourenço
Trajes asturianos

O cenário da natureza condiz com o temperamento do povo

Por outro lado, o cenário da natureza condiz com o temperamento do povo e, ao falar do costume, precisamos considerar esse cenário. O pinheiro, o Tannenbaum, vai bem com o prussiano, e o castanheiro, o marronier, com o francês. Aquelas montanhas da Espanha se ajustam com o temperamento espanhol. Tem-se a impressão de que andou por ali um gigante furioso, caprichoso e individualista, o qual distribuiu taponas e pontapés naquelas montanhas, onde o espanhol sente-se em casa. É preciso ter a grandeza do espanhol para se compreender onde ele está. Já a doçura portuguesa é outra coisa.

Então, eu queria fixar bem o princípio: O nascimento do costume vem da existência de um pulsar e de um viver sincrônico, de um unum com notas biológicas, condicionadas pelo ambiente, pela paisagem e pela história daquele povo. E esse unum faz com que, diante de situações novas, de interesses socioeconômicos e culturais, todos se adaptem de um determinado modo. Mas essas adaptações, por qualquer coisa de instintivo, de simultâneo e, neste sentido, de coletivo, representam a soma das observações ultrapormenorizadas que um povo de uma região faz das suas próprias condições, e da sabedoria com que ele vai procurando as acomodações. E isso faz o nascimento sincrônico do costume.

Flávio Lourenço
Pirineus, Espanha

Qual a relação entre costume e Religião dentro disso? É que isso supõe as virtudes cardeais de um povo bastante vivas. Daí essa possibilidade de encaixe, de formação desse tipo de nação; e também de subir da esfera privada uma evaporação magnífica, que é o conjunto consuetudinário, o qual vem a ser mais inteligente do que qualquer gênio.

A questão das formas de governo se estuda muito melhor em função da região do que desse ente vazio de regiões, que é o Estado, no qual se costuma pensar quando se considera em termos comuns o problema. Portanto, para compreendermos bem as formas de governo, quando cabem, quando não, seria preciso pensar em regiões, pois enquanto não houver regiões definidas não haverá condições para assentar nenhuma forma coletiva de vida verdadeira, e nenhum Estado digno desse nome. Este será como construções artificiais em cimento armado, mas não edificações fortes de pedras naturais.

Daí, aliás, a sabedoria alemã dos pequenos Estados confederados que dão uma estrutura mais alta, um Sacro Império, com elites de toda ordem.

Interação entre os princípios e o costume

Entretanto, nunca chegaremos a entender bem o assunto se não compreendermos que a virtude antecede, de certo modo, o conceito, o princípio. Quer dizer, um princípio muito elementar está na base da virtude. Por exemplo, a fidelidade conjugal é uma virtude. Ela tem na sua base um princípio muito elementar ou evidente. Mas logo depois de concebido, de conhecido esse princípio, e antes mesmo de ele acabar de se explicitar inteiramente, num povo virtuoso ele está gerando costumes. Ele produz uma grande apetência, a qual começa a gerar costumes.

À medida que o povo de uma região vai crescendo – vamos sempre pensar em regiões –, o princípio vai se explicitando e gerando novas aplicações do princípio. E há uma interação princípio-costume, costume-princípio que é diferente de tomar um aluno, metê-lo numa sala de aula universitária, e o professor escrever no quadro negro a teoria e depois dizer: “A partir disso, comecem a executar.” Não dá verdadeira frutificação.

Ilustrações: Léon-Xavier Girod (CC3.0)
Construções na Indochina, gravuras do século XIX

O indivíduo deve estar num ambiente onde, antes de receber a aula, os elementos primeiros do que lhe foi ensinado ele já possuía, e com vida. Então há um intercâmbio entre o intelectual e a vida; o intelectual traça um princípio, tira uma dedução, mas a sociedade inteira já está tendendo a deduzir isso também. O intelectual não vive sentado numa mesa e ali lê a realidade, mas ele é levado a pensar acompanhando essa produção da região e teorizando aquilo que a região anda fazendo.

Do que me adianta imaginar um homem na Provence, região do Sul da França, sentado junto a uma escrivaninha e teorizando, mas inteiramente alheio à sua região? Ele pode receber prêmios internacionais, o curso das coisas da região dele não foi para a frente. Se ele tivesse sua vida intelectual entrosada com os problemas da região, quer dizer, se sua intelectualidade fosse tal que estivesse viva, agarrada nos problemas da região, seria um intelectual perfeito.

Ilustrações: Léon-Xavier Girod (CC3.0)

Do mesmo modo, ai da região que não tenha vocações sacerdotais! Ela está fadada a morrer, porque o clero de uma região é levado a fazer esta simbiose entre a Religião e a sua prática nas condições da região. E com um clero regional. Porque – falando do Brasil – se numa igreja o pároco é um padre holandês, em outra um iugoslavo, mais adiante um nacional que é pároco em Curitiba, nascido no Amazonas, não vai.

Ilustrações: Léon-Xavier Girod (CC3.0)

Quer dizer, nós devemos ser gratos aos padres de fora que vêm aqui substituir a lacuna numérica de nosso clero, seria uma desgraça se não viessem, mas a solução perfeita – aliás a Igreja exigiu sempre isso – é a vocação sacerdotal do lugar, do país. Mas eu iria um pouco mais longe, de preferência da região. Isto seria a coisa perfeita, porque aí a prática da Religião iria sendo inserida no costume local.

A graça conserva o que um povo tem de bom, eleva-o e orienta-o

Dois rapazes de nosso Movimento resolveram fazer uma peregrinação penitencial. Escolheram um lindo trajeto, de Roncesvalles, que foi onde Roland morreu, a Santiago de Compostela. Foram procurar o abade e pediram-lhe uma bênção. O abade, que certamente deve ser da região, disse: “Isso assim não basta. Vamos fazer uma coisa séria e inteira. Vocês vão pôr o traje de peregrinos como era utilizado na Idade Média.” Inclusive arranjou para eles os chapelões, o bastão e as conchas que caracterizavam os peregrinos medievais. E começaram a andar a pé. Ao longo do caminho foi uma ovação! Gente que parava, tirava fotografia, queria saber o que era, ajudava, uma festa! Era a ressurreição de um costume. Aquelas zonas gemem ainda por não ter mais o costume.

Aliás, a graça atua dentro da natureza exatamente na linha do que estou falando, porque a graça se insere como um acidente sobrenatural, uma participação criada na vida de Deus, e ela embebe todo aquele ser, conserva, eleva e orienta para o que ele tem de melhor no seu gênero. Isso indica como a força da graça, geradora de costumes, é incomparável. São coisas lindas!

Poder-se-ia perguntar: Já que a região é tão condicionante do costume, como se forma uma região?

Talvez a parte da Terra onde a geografia mais favorece a formação de regiões é a Indonésia. Tem milhares de ilhas. E cada uma daquelas nações são insulares, são reinos de uma, dez, cinquenta ilhas, um arquipélago. Chegou um povo, morou só ali, todo esse desenvolvimento consuetudinário se deu nele sozinho e, portanto, sem enriquecimento de fora, mas também sem mescla. Portanto, com uma coerência absoluta com os elementos nativos primeiros. E a este título privilegiados, de um lado.

Outro lado seria nós considerarmos povos vários obrigados a se mesclar. Eu descrevi há pouco a formação do costume. Com essa boa presença da graça entre nações católicas, compreende-se muito bem. A graça fá-los-ia se entenderem melhor, conviverem com mais compreensão, se enriquecerem mutuamente do que trariam. E viria daí uma coisa composta com uma beleza própria e magnífica!

Problemas de uma beleza extraordinária

Mas aí caberia uma objeção: “Está bem, mas tome, por exemplo, uma composição perfeita assim, elaborada fora do regime da graça, que, entretanto, é uma das mais bonitas existentes na História: a Indochina. A Índia e a China se encontraram na Indochina, e saiu uma coisa heterogênea hindu e chinesa, até certo ponto requinte das duas, e sobretudo uma terceira coisa, que não é uma composição mecânica, mas é algo vivo. E aquilo foi feito por um povo primitivo que não tinha a graça. Não estarei exagerando o papel da graça por pura devoção?”

A resposta é simples: Encontramos nos primórdios de certos povos da humanidade a possibilidade de fazer algumas coisas, como se a graça o realizasse. Mas é porque eram povos que ainda estavam meio próximos, de um modo ou de outro, senão cronologicamente, pelo menos psicologicamente, do estado primeiro da humanidade antes de ter pecado muito. Eram povos que ainda tinham uma capacidade extraordinária de engendrar costumes e de perpetuá-los. À medida que o rio de pecado da História foi escorrendo sobre esses povos, a questão foi mudando. E eles acabaram só podendo ir até determinado ponto, paralisando-se a certa altura. E a ação da graça concedida ante prævisa merita1, foi sendo interrompida, transviada de tal maneira que os europeus derrubaram essas culturas milenares – que não eram uma ninharia, mas coisas vivas – com uns piparotes.

O que foi feito com a China, o Japão? O Japão de hoje é o do tempo dos Xoguns e do Mikado, mas transformado completamente. É um Japão americanizado completamente. Mas, por que deu nisso? Porque rios de pecado correram em cima disso.

Compreende-se, assim, a formação desse caldeamento indochinês magnífico. É muito interessante aquilo! Como tem critérios, como está tudo bem composto! É a tal experiência individual que expliquei há pouco. Acho esses problemas de uma beleza extraordinária!

Alguém me deu uma pinturazinha impressa sobre seda, representando uma dama típica do século XVIII. É todo um outro mundo, que não aquele de Berlim, mas tem algo que não existiu alhures. É uma simples dama, numa casa qualquer, com móveis comuns daquele lugar, uma senhora quase tomada em abstrato. Entretanto, quanta delicadeza! Ela está sentada, mantendo uma boa distância do dorso da cadeira. Lembro-me ainda de mamãe, mais ou menos com cinquenta anos de idade, almoçando sem encostar-se no espaldar da cadeira. É uma coisa especial.

Isso é um costume. Se não fosse todo esse caldeamento que descrevi, não teria saído isso. Essa pintura foi feita no século XX, e quero conservá-la porque, além de ser muito típica, é um preito de admiração de nosso século aos tempos que se foram.

(Extraído de conferência de 29/8/1986)

1) Expressão latina utilizada na Teologia para significar “na previsão dos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo”.