National Gallery of Ireland (CC3.0)

Como ensina São Tomás de Aquino, a desigualdade entre os seres é necessária, pois a igualdade desfiguraria o universo e a sociedade humana. Por disposição divina, há na Igreja pessoas com uma visão mais nítida da Doutrina e maior senso católico, e possuem com isso uma superior capacidade de induzir os outros à prática do bem.

Os critérios e valores que a respeito das desigualdades sociais figuram e preponderam em nossos dias são muito diferentes dos de antigamente. A este propósito pretendo considerar duas posturas erradas para depois apresentar a posição católica com suas raízes doutrinárias.

Estado de espírito de conformismo

Para isso vamos imaginar que, entrando numa casa de família, encontrássemos numa gaveta não apenas álbuns com fotografias, mas a correspondência mantida ao longo dos anos entre pais e filhos, desde as cartas mais antigas até as mais recentes. E pegássemos, então, uma redigida no século XX na qual lêssemos o seguinte:

“Meu filho, não pense jamais que sua inteligência e sua vontade são a regra e a medida de todas as coisas. Nas margens dos caminhos da vida transviados e isolados, você encontrará, errando com fantasmas, mais de um homem de valor que se perderam por pensar assim.

“O que é a inteligência de um só homem para resolver por si os problemas incontáveis e, mais do que isso, insondáveis do universo da vida? Se você tem alguma opinião, é à custa de ter aceitado como certas as primícias que lhe foram proporcionadas por outros homens tão cegos e frágeis como você. Nem a sua opinião nem a deles vai além do valor relativo do juízo humano.

“Mil pessoas com reduzida vista, observando uma estrela, percebem a respeito dela pouco mais do que se a fitasse um só indivíduo. Em todo caso, ainda é mais provável que a verdade esteja com a maioria, pois se quatro olhos péssimos veem mais do que dois igualmente maus, pelo mesmo cálculo conclui-se que a maioria tem mais probabilidade de acertar.

“De qualquer forma, conforme-se a ela, pois só assim evitará ser tido por singular, extravagante e esquisitão. Terá num convívio com seus semelhantes aquela consonância, aquele calor de solidariedade, de simpatia que é o prazer supremo, sem o qual são iguais a zero todos os gostos da vida.

“Se a sorte lhe for adversa, você encontrará quem o compreenda, ampare e ajude. Se ela lhe for favorável, sua vitória produzirá alegria e não inveja nos outros, e você terá em torno de si amigos e não vencidos. Nisto encontrará uma tranquilidade, uma estabilidade, um aconchego que será o encanto de sua existência. A vida lhe correrá em progresso fácil, uniforme, sem as apreensões, os raios e as borrascas que podem nos acometer ao longo de nossa existência.

“Se agir de outra maneira será um Dom Quixote, fantasma e não homem. Veja em torno de si esses originais que durante a vida inteira tudo decidiram e fizeram por si mesmos. Pretenderam ser a medida de todas as coisas e, como ninguém os aceitou enquanto tais, criaram em torno de si isolamento e incompreensão. Seus inimigos são todo mundo, seus amigos ninguém, sua vida uma luta sem fim, seu falecimento uma festa coletiva e se logram estima é apenas depois da morte, pois só então cessam de guerrear, de discutir e de perturbar. Mas de que lhes vale isso se nem eles e nem nós sabemos o que nos aguarda depois desta vida?”

Esta seria uma carta mais do que banal, exprimindo um estado de espírito de conformismo: é preciso ser como todo mundo, pois a vida assim é gostosa, dá bons resultados.

Individualismo romântico

Em seguida, poderíamos encontrar uma carta mais antiga, por exemplo, do século XIX, com os seguintes conselhos:

“Meu filho, nunca te deixes influenciar nem mandar por ninguém. Sê homem. Toma por ti tuas decisões, aguça tua lógica, aviva tuas observações. Tens valor suficiente para encontrar por ti a tua verdade e escolher o teu caminho. Agindo assim, chegarás à perfeição de ti mesmo por um aproveitamento árduo, forte, ousado de todos os teus recursos, vencendo teus defeitos. Serás um homem na expressão maior do termo, com o governo absoluto de ti e a plenitude de personalidade em que consiste toda a dignidade de um homem. Ainda que a sorte te seja adversa, pisado, esmagado, vencido, todos te respeitarão.

Christie’s (CC3.0)

“Pelo contrário, se a sorte te for favorável, a vitória será para ti o adorno dos teus méritos e terás aos olhos de teus pares um ascendente mais alto, mais estável, mais bem aceito do que te poderia dar todas as boas aparências do bluff da propaganda. Além de grande, serás feliz, pois a sensação da plenitude do teu valor, o gosto inebriante de pensar só por tua cabeça, de decidir apenas pela tua vontade e de conduzir com lucidez, força e destreza, através de mil imprevistos, a luta de tua vida é o maior e único prazer digno de um verdadeiro varão; prazer dos grandes, dos fortes, dos sábios que fundam novas filosofias, dos guerreiros que criam novos impérios, dos descobridores que investem contra o desconhecido e encontram novos mundos.

“Se agires de outra maneira, não serás verdadeiramente um homem. Vês em torno de ti esses homúnculos de joelhos a obedecer? São subordinados dos outros e levados segundo as conveniências daqueles de quem dependem; débeis, indecisos, tímidos. Quando triunfam recebem aplausos, mas não suscitam admiração. Quando fracassam são objeto de desprezo ou de comiseração, nunca, porém, de respeito. Se saem vencedores, o que ganham é nada; se derrotados, perdem tudo. Quando vivem, vegetam; quando morrem, desfazem-se em pó e com todos os seus louros, suas nutridas carnes e seus ossos só na sepultura cessam de tremer.”

Seria uma carta característica do individualismo romântico do século XIX: engrandecimento da independência, afirmação de que o homem deve dominar todas as coisas.

Ambas as atitudes se opõem ao contrarrevolucionário

Poderíamos dizer que se estabelecem dois modos de ser diferentes. No século XIX, o ideal é o do homem cuja perfeição pessoal está em atingir a plenitude de si mesmo. No século XX, o ideal é o do homem prático que visa alcançar o êxito na vida. O conceito de felicidade no século XIX é o gozo da própria plenitude pessoal, enquanto que no século XX é a sensação de segurança resultante do auxílio mútuo entre os homens. O que um homem quer dos outros, no século XIX, é admiração e respeito; já no século XX, ele busca ajuda e simpatia. O primeiro procura a glória; o segundo, o repouso.

Essas atitudes eu não diria que são exclusivas do século XIX ou do século XX; elas se prolongam em nossos dias. Já existiam no século XIX e continuam a existir no século XX, mas com tonalidades diferentes. Nós poderíamos dizer que o espírito prático predomina no século XX, e que o espírito individualista e de afirmação romântica da própria personalidade predominava no século XIX, mas ambas as atitudes costumam existir em nossos dias e às vezes na mesma pessoa.

É preciso que, analisando o estado de espírito das pessoas, notemos nelas tinturas de ambas as posições, de maneira que elas, às vezes, têm acessos de afirmação pessoal exagerada: “Em mim ninguém manda!”; depois, de repente, atira-se como capacho diante de alguém para fazer um bom negócio. Ou, às vezes, tem, por exemplo, um acesso de medo diante da opinião pública, mas, de repente, dá a louca de fazer a coisa mais extravagante que pode haver.

Até certo ponto, ambas as atitudes se voltam em oposição ao contrarrevolucionário. A que corresponde à afirmação pessoal se opõe no seguinte sentido: o contrarrevolucionário obedece ao espírito católico, aceitando uma disciplina de pensamento em relação à Igreja. Então, contra esta posição disciplinada em relação ao bom espírito, as objeções feitas ao contrarrevolucionário à século XIX são: “Você deveria ser independente, mais livre, ter mais personalidade…”, etc.

De outro lado, com referência à posição dos contrarrevolucionários em relação ao mundo, as objeções são as do século XX: “Vocês são isolados, diferentes, estão em luta contra todo o mundo. Vocês não gozam as vantagens do círculo de sociabilidade. Vocês são uns Dons Quixotes!”

A desigualdade das criaturas

À luz da Doutrina Católica, o que se deve pensar a esse respeito encontra-se muito bem expresso em São Tomás de Aquino, quando ele trata sobre a desigualdade das criaturas.

Como explica São Tomás, para que a Criação espelhasse as perfeições de Deus, era preciso que houvesse vários seres. As perfeições divinas não poderiam ser convenientemente espelhadas por meio de um ser só. Por isso, ele afirma que a bondade de Deus está representada de um modo mais perfeito por todo o universo em seu conjunto do que estaria por uma única criatura, qualquer que fosse.

Vejam bem o aspecto que essa afirmação tem. Se Deus criasse só Nossa Senhora, cuja excelência é incomparavelmente maior do que todos os Anjos e todos os Santos, Ela em si, sozinha, não espelharia tão bem a bondade do Criador quanto o universo tendo a Santíssima Virgem e uma porção de outros seres diferentes d’Ela. Essa pluralidade de seres distintos entre si, para constituir um conjunto que espelha Deus, é indispensável para que o fim dado pelo Criador aos seres ao fazer a Criação se realizasse com toda a conveniência.

Pergunta-se: “Deus não poderia ter criado seres distintos, mas inteiramente iguais? Seria preciso que esses seres fossem desiguais? Essa desigualdade entre os seres é necessária?

São Tomás examina o problema e demonstra que Deus amou os seres gratuitamente e deu a uns mais e a outros menos, sem nenhuma injustiça, porque quis dar, e que, fazendo a Criação com vários seres, Ele não podia deixar de criá-los desiguais.

Nós poderíamos reportar aos homens o mesmo princípio existente entre os Anjos. Estes são seres de uma qualidade enormemente superior aos homens, mas não realizam no Céu essa plenitude de personalidade que a imaginária carta do século XIX representaria. O Anjo não está colocado no Paraíso celeste como um cidadão livre, independente, vacinado, eleitor, maior de idade, que olha a Deus face a face e não precisa de ninguém.

Pelo contrário, o Anjo do Céu está dependente de outrem. Em que sentido da palavra? O conhecimento angélico de Deus é de dois modos: os Anjos veem a Deus face a face. Todos eles têm a visão beatífica e por aí possuem um certo conhecimento de Deus. Mas também os Anjos de categoria superior informam aos Anjos de categoria inferior certas coisas que eles veem e os de categoria inferior não veem. Então, os Anjos de categoria inferior têm dois modos de conhecimento: um direto e outro que é o indireto, obtido por meio dos outros Anjos.

Jörgens.mi (CC3.0)
Juizo Final (detalhe) Cappella degli Scrovegni, Pádua

E o Anjo, que afinal de contas realiza uma plenitude de personalidade muito maior do que a do homem, apoia-se, por assim dizer, em Anjos superiores para ter de Deus um conceito completo. Ele recebe uma informação a respeito do Criador que por si mesmo não poderia ter. Quer dizer, o Anjo neste sentido, apesar de ser espírito puro, de ter toda a lucidez da natureza angélica, recebe informações – notícias, para falar em nossa linguagem – a respeito de Deus que ele diretamente não tem. Ele é obrigado a ter certa humildade, pois precisa receber de outro.

A igualdade desfiguraria o universo e a própria sociedade humana

Antes do pecado original, como seria isso com os homens? São Tomás trata também da questão e esclarece o assunto. Antes do pecado original, a inteligência humana não tinha sofrido as consequências de se tornar capaz de erro. Nem a vontade humana tinha ficado desregrada, propensa ao mal, como se tornou depois do pecado original. Apesar disso, os homens seriam de inteligência e capacidade desiguais, e a natureza humana era tal que se os homens tivessem vivido no Paraíso terrestre com a natureza íntegra, uns seriam mais capazes e dirigiriam os outros, enquanto os menos capazes deveriam ser dirigidos. Isto era feito como ordem ideal da sociedade humana. Não se tratava de uma contingência enfermiça, de uma situação que não pode ser superada, mas era a relação ideal entre os homens.

Às vezes, vemos uns bobos alegres que dizem: “Seria uma beleza se todos pudéssemos ser iguais, mas neste mundo a igualdade não se realiza…”

Ora, não se deve lamentar que a igualdade não exista. Ela desfiguraria o universo e a própria sociedade humana. Como ordem ideal entre os homens, para que a humanidade espelhe as perfeições divinas, o melhor é a desigualdade. Esta é a ordem concreta das coisas e assim deveria ser mesmo no Paraíso terrestre, apesar de todos os repelões que isso poderia dar no orgulho, na pretensão e na vaidade humana.

Tendência do homem para confiar na opinião pública

Imaginemos que Adão e Eva não tivessem pecado e no Paraíso terrestre habitassem, por exemplo, quinhentas mil pessoas. Pergunta-se: Haveria opinião pública e quais seriam as relações dos homens com ela?

Embora um homem possa ser inferior a outros, há no espírito de cada ser humano riquezas pelas quais ele é superior a todos, ainda que a um pequeno título, por mais modesto que seja. Se houvesse quinhentos mil homens cônscios dessa verdade, permutando entre si aquilo que eles veem a respeito dos outros, de maneira a essa permuta harmônica de opiniões, todas verdadeiras, constituir uma espécie de parte coletiva da verdade total, em razão de seu instinto de sociabilidade e pelo fato de a opinião pública não errar, no Paraíso terrestre o homem poderia ter toda confiança na opinião dos outros, encontrando na opinião de todos um repouso para o seu próprio espírito. Seria um manancial enorme de sabedoria, honestidade, bom senso no qual ele iria buscar os elementos necessários para se formar.

Esta tendência do homem para confiar na opinião pública é inerente à sua natureza e, ao cometer o pecado original, o homem veio para a Terra com essa mesma tendência, razão pela qual nos sentimos tão prazerosos quando podemos concordar com todo mundo. Temos uma propensão natural para pensar que uma coisa é de um certo jeito quando todos veem assim.

Saindo do Paraíso terrestre, aconteceu, entretanto, um desastre para o homem: tornou-se sujeito a erro e, com ele, também a opinião pública. Assim, o ser humano encontra-se numa alternativa das mais cruéis: como ele vê que a opinião pública erra muito, fica colocado numa posição de desconfiança em relação a ela; mas como também tem a experiência de que ele erra muito, acaba sendo empurrado para uma confiança exagerada na opinião pública. Do fato de a opinião pública ser cega, ou catacega, tanto quanto ele, resulta um movimento duplo, ora de desconfiança excessiva, ora de confiança demasiada.

Homens que influenciam e guiam outros

É a Santa Igreja Católica Apostólica Romana que nos põe na posição verdadeira diante desse quadro. Na realidade, se pensamos no tesouro que representa para nós a sã Doutrina Católica, não temos palavras para agradecer a Deus o fato de pertencer e essa Instituição divina.

Basta considerar tudo quanto ela ensina sobre Deus, os Anjos, a outra vida, a Moral, a estrutura da sociedade e do Estado, sobre a economia, enfim, mil coisas a respeito das quais devemos ter uma certeza firmíssima, à qual jamais poderíamos ter chegado apenas pelo mecanismo do nosso espírito.

Amparado assim por um ensinamento infalível, o ser humano encontra uma série de verdades e de certezas, escapando desse jogo de confiar demais em si ou na opinião pública, para ter confiança inteiramente e sem reservas na Igreja Católica, única que lhe pode dar toda a verdade, e fora da qual ele vê apenas fragmentos da verdade. Na autoridade da Igreja ele encontra uma plenitude de segurança que nenhum dos outros critérios – sejam os do individualismo romântico do século XIX ou do pragmatismo coletivista do século XX – lhe oferece. Na Igreja o homem encontra aquela plena estabilidade que a sua personalidade pede.

Entretanto, ainda aqui há uma distinção a ser feita. Nem todos veem a Doutrina da Igreja com a mesma clareza e lucidez. Por uma ordem providencial existem na Igreja a parte docente que nos dá a doutrina, e a discente que é ensinada. Contudo, não podemos reduzir o jogo das influências da Igreja apenas a esse fato. Há também aqueles que por disposição divina têm uma visão mais nítida da Doutrina Católica e possuem em quantidade maior aquilo que chamamos o senso católico, e têm com isso uma capacidade maior de induzir os outros à prática do bem. Outros, pelo contrário, são menos providos dessas qualidades.

Isso não é necessariamente o efeito de uma falta de santidade nem de inteligência, mas das disposições da Providência Divina, pura e simplesmente, por onde nós vemos que certos homens são colocados no caminho de outros para influenciá-los e guiá-los, enquanto esses outros correspondem à graça de Deus na medida em que se deixam influenciar e guiar. Portanto, dentro da própria Igreja Católica, de fiel a fiel, Deus estabeleceu desigualdades porque quis, e deu a algumas almas a missão de fazer bem às outras.

Duas espécies de influências

E assim como quem tem obrigação de fazer o bem não pode deixar de o realizar sob pena de subverter o plano do desígnio da Providência, aquele que foi destinado a receber o bem não pode deixar de o acolher sob pena, também ele, de desvirtuar as intenções da Providência. De maneira que essa atitude individualista, que consistiria, por exemplo, em dizer: “Tal amigo meu me dá um conselho, mas vou seguir esse conselho se eu quiser, porque não há razão nenhuma para ele me influenciar, me orientar. Faço o que entendo, porque sou um homem formidável que dentro do mundo da Doutrina Católica me oriento de acordo com a minha cabeça…” Essa é uma posição absolutamente falsa, contrária ao que a Igreja nos ensina sobre os desígnios da Providência Divina.

Nessa ordem de coisas há duas espécies de influências. A primeira é como que institucional e conforme à natureza da Igreja. Todo homem foi feito para ser espiritualmente dirigido e, a meu ver, esta é a mais formidável condenação dessa falsa independência que o espírito liberal poderia contar entre as almas na Igreja. Todo homem foi feito para confessar, portanto para ter confessor e diretor espiritual.

É possível que em circunstâncias anormais da vida da Igreja não seja tão fácil encontrar diretor espiritual, mas são anomalias que pesam severamente sobre as condições de santificação de uma cidade, de uma região, de um país ou de toda uma raia de cultura. Mas, normalmente, o homem foi feito para ser dirigido espiritualmente.

Classense Town Library (CC3.0)
São Pedro Damião – Biblioteca Classense, Ravenna, Itália

Mas além dessa influência existe também a dos bons livros, bons ambientes, dos bons amigos, bons superiores, que são influências que o homem conscientemente deve aceitar e diante de cuja liderança ele subconscientemente precisa se inclinar. Agir de outra maneira é afirmar um espírito de independência contrário à Doutrina Católica.

São Gregório VII repreende firmemente São Pedro Damião

Lembro-me de ter lido uma carta muito interessante de São Pedro Damião para São Gregório VII, o papa que executou a reforma da Igreja em condições magníficas com uma energia enorme; um dos seus auxiliares era São Pedro Damião.

São Gregório VII era tremendo em severidade. Ele mandou São Pedro Damião, então cardeal, à França para fazer uma reforma. Provavelmente este não tinha ainda atingido os píncaros da santidade e, chegando lá, foi na onda dos bispos franceses e fez uma combinação com eles da qual São Gregório VII não gostou.

Então, o Santo Papa enviou uma carta tremenda para São Pedro Damião, dizendo: “Onde está a previdência do seu espírito que em contato com raposas astutas não percebe? Você foi mole, não soube resistir…” Só faltou chamá-lo de hipócrita…

E São Pedro Damião escreveu a São Gregório VII:

“Recebi tua carta e aceito humildemente a repreensão que me é feita. Realmente eu mereço. Posso dizer que, mesmo com menos energia, menos insistência e argumentação, eu já reconheceria meu erro e me emendaria. Mas, afinal – e vem a expressão de São Pedro –, és o ‘Santo Satanás’ que me tentas para toda a forma de bem; eu me inclino diante de ti, modifico meu juízo e estou disposto a refazer minha ação.”

Está conforme, até o último extremo, ao que dizíamos.

A expressão “Santo Satanás” quer dizer um homem posto junto a ele para induzi-lo a toda forma de bem, como o demônio está próximo a nós para nos levar a toda forma de mal; e é virtude aceder a todos os incitamentos que o Santo nos faz para o bem, como será virtude recusar todos os incentivos que o demônio nos faz para o mal.

RomkeHoekstra (CC3.0)
Papa São Gregório VII – Igreja de São Bonifácio, Leeuwarden, Países Baixos

Assim como em relação ao demônio, percebendo que ele deseja uma coisa, ipso facto devemos querer o contrário, também relativamente àquele cuja influência sentimos que nos leva para o bem devemos abrir a nossa alma intencionalmente. Abri-la – não recuo diante da palavra – varonil e corajosamente porque é por aí que a graça de Deus penetra em nós.

As obras de Deus não têm anonimato

As obras de Deus não têm anonimato. Essa ideia de que o Criador age sobre nós por processos puramente anônimos ou quase anônimos, eu acho que é exatamente um dos maiores defeitos de certas concepções de apostolado com as quais nos debatemos.

Tenho visto padres que têm, por exemplo, a concepção de que é um grande apostolado construir uma igreja, numa paróquia qualquer, e pôr ali um sacerdote o qual começa a celebrar Missas, realizar casamentos, absolver; enfim, julgam que com o funcionamento sacramental e administrativo da paróquia o apostolado está feito.

Que tudo isso é muito bom, não nego, até pelo contrário concordo inteiramente. Mas colocar numa igreja um padre qualquer, que trate anonimamente massas de povo que passam, é cair exatamente dentro dessa atmosfera de anonimato a qual devemos recusar. Porque ocasiona estas coisas que estamos fartos de ver: as igrejas se enchem aos domingos e o vigário, vendo ali um padre qualquer que veio do interior ou de outro Estado, lhe pergunta:

— O que o senhor deseja?

— Eu quero celebrar a Missa.

— Está bem. Mas o senhor faz o sermão também?

— Faço, pois não.

Arquivo Revista
Dr. Plinio na década de 1950

Esse padre durante a Missa vai ao púlpito e profere o sermão. Ele não conhece ninguém que está na igreja, e os fiéis também não se conhecem. Terminada a celebração aquilo se dispersa. Esse tipo de relações impessoais está fora da ordem plena da Providência para a salvação eterna. A Providência pede uma coisa diferente disso.

Dizem que nós estamos na época do apostolado dos leigos. Este, porém, não consiste em, por exemplo, mandar um qualquer percorrer dez colégios fazendo um incitamento para a Páscoa. Depois passa um padre em cada um desses estabelecimento e celebra a Missa, todos comungam e está feita a Páscoa. É uma coisa boa, mas ficar nisso não basta porque não realiza o objetivo.

Deus age sobre umas pessoas por meio de outras e pessoalmente consideradas. Para que a eficácia do apostolado tenha plena pujança é necessário um contexto de relações inteiramente pessoais, que sirvam de instrumento para a graça de Deus. As coisas impessoais absolutamente não bastam.

Se isso é verdade, precisamos reconhecer que aqueles que são objeto dessa ação apostólica devem se deixar influenciar. Mas se eles não se deixam influenciar, evidentemente a ação não realiza o seu fim.

Dessa forma se demonstra que, mesmo dentro do firmamento da Igreja Católica, umas almas devem exercer mais influências e outras precisam ser mais influenciadas. É a ordem natural das coisas. Querer violar esta ordem é colocar-se fora da linha dos desígnios de Deus. Através dessa influência de caráter pessoal a alma é atraída.

(Extraído de conferência de setembro de 1956)