Através da narração de belas histórias, Dona Lucilia contribuiu de modo marcante para o desenvolvimento do senso do maravilhoso em Dr. Plinio, fator de grande importância para a futura reação contra-revolucionária.
Quando eu tinha doze, treze anos de idade, minha irmã, meus primos e eu formávamos uma roda grande de meninos, meninas, e tínhamos grande entusiasmo por ouvir histórias narradas por Dona Lucilia.
Ela, que era muito imbuída de cultura francesa, nos contava histórias de Alexandre Dumas, como “Os três mosqueteiros”, que naturalmente ela adaptava, tirando o que havia de inconveniente. Então os mosqueteiros D’Artagnan, Aramis, Athos e Porthos eram personagens familiares como se convivessem conosco.
Atitude de admiração com muitíssimo afeto
Mas na época em que eu era mais menino, a coisa se passava de um modo diferente.
Diariamente — como fazem todos os meninos com seus pais —, eu me levantava, rezava, fazia a toilette e ia dizer “bom-dia” para ela. Para esse “bom-dia” minha governanta alemã queria horário fixo, naturalmente, mas ela já tinha compreendido o jeito de ser brasileiro e que o horário era fixo nas linhas gerais, pois em certos dias tudo começava mais tarde, porque eu tinha ficado conversando com Dona Lucilia.
Lembro-me dela, deitada na cama — era doente, levantava-se tarde, e essa cena dava-se em seu quarto, pelas oito e meia da manhã —, quando ela estava acabando de tomar o café.
Meu pai levantava-se mais cedo; eu entrava pelo lado da cama onde dormia meu pai e chegava até ela. Abraçava-a, beijava-a várias vezes, e depois ficava aos pés da cama, ou sentado ou, muitas vezes, deitado, e olhando para ela, numa atitude de afeto em que entrava muitíssima admiração. Ou, se quiserem, numa atitude de admiração em que entrava muitíssimo afeto.
Falávamos um pouquinho e eu pedia para ela contar alguma história. Mas então era uma história só para mim. Também moravam em casa uma irmã e uma prima, as quais tinham horários e afazeres de meninas, naturalmente separados dos meus. E elas nessa ocasião estavam fora; eu então tinha mamãe só para mim, única e exclusivamente.
E eu percebia que ela, com os seus olhos marrons escuros, prestava atenção em mim e como que, existia só para mim. E conversávamos.
Interesse pelo Marquês de Carabás: fermento de Contra-Revolução
Ela então me contava esses casos próprios para criancinhas: Gata Borralheira etc. Mas o caso do qual eu mais gostava era o do Gato de Botas, que todos ouviram em pequeno. São casos mundiais, tenho impressão de que até na Índia, no Afeganistão, se conta o caso do Gato de Botas.
Mas ela era muito imaginosa e eu muito pormenorizado. No caso do Gato de Botas — vê-se aqui uma espécie de fermento de Contra-Revolução que já trabalhava em mim —, o grande personagem, para mim, não era o gato. Eu achava mais ou menos banal que um gato tivesse aquelas botas, falasse; não me espantava muito com isso. Entretanto eu me interessava enormemente por um dos personagens da história do Gato de Botas, que era o Marquês de Carabás.
Ela possuía essa intuição afetiva das mães — além disso, com muito senso psicológico —, via por onde caminhava meu interesse e fantasiava a história de acordo com minha curiosidade. Enquanto ela ia contando a história, eu ficava à espera do momento que entrava o Marquês de Carabás.
Eu conservo a confusa ideia de que o Gato de Botas acabou sendo aliado do Marquês de Carabás, mas não me lembro bem por quê.
Mamãe apresentava o Marquês de Carabás como um homem que morava num castelo, e saía a certa hora numa carruagem toda dourada, com os vidros de cristal bombeados, plumas em cima do carro e várias parelhas de cavalos tocados por cocheiros com chapéu tricórnio, com plumas, alamares etc., lacaios atrás. Ele era dono de vastidões enormes, que o olhar humano não podia alcançar, com trigais dourados, agitáveis pelo vento numa direção e noutra. O Marquês então passeava olhando os seus trigais, de dentro de sua carruagem.
Eu achava essa situação maravilhosa e tinha um verdadeiro entusiasmo pelo Marquês de Carabás, pelos adornos dele, pelos postilhões, pelos lacaios etc. E quando chegava a hora de ele entrar em cena, eu começava com as perguntas:
— Mamãe, como era a carruagem do Marquês?
Ela mais ou menos inventava uma história, e eu indagava:
— E tinha pluma em cima?
— Tinha.
— Eram azul-claro, cor-de-rosa ou verde-claro?
Naturalmente ela sempre respondia conforme eu queria, de acordo com a minha índole.
— E como eram os cavalos, como estavam ajaezados, como era a roupa do Marquês?
Dona Lucilia dizia que o Marquês descia da carruagem com uma sacola grande, toda dourada, onde ele levava moedas de ouro — parece-me que era para dar aos pobres. Eu então perguntava como era a sacola, se tinha franjas e de que tamanho elas eram. E se os postilhões do Marquês tocavam trompa quando a carruagem se movia…
E ela ia contando tudo, mas eu era insaciável.
Ainda quando eu era pequeno, não sei por que, mamãe me chamava de “filhão”. Ela me perguntava:
— Filhão, que história você quer hoje?
E eu dizia:
— O Gato de Botas.
Eu era tão pequenininho que não sabia dizer que meu desejo era o Marquês de Carabás. E mamãe contava as coisas mais inverossímeis do Gato de Botas — é um caso todo inverossímil; eu não fazia muitas perguntas. Quando chegava o Marquês, eu brecava o carro; sempre eu tinha novas perguntas a respeito dele.
Não pensem que tenha ficado estéril o que ela contava com um encanto extraordinário — ao menos para mim.
Visita à Cidade-Luz
Depois disso, ela adoeceu gravemente e foi para a Europa operar-se. Ela teve uma doença da vesícula biliar, que hoje é muito comum e trata-se facilmente. Mas naquele tempo era uma doença gravíssima, e só havia um meio de não morrer: fazer uma operação que, no mundo inteiro, só um médico alemão — que, aliás, era também médico do Kaiser —, o Dr. Bier, realizava. E consistia em tirar a vesícula biliar.
Quando mamãe chegou a Berlim, o médico disse-lhe que ela era a segunda senhora do mundo da qual iria tirar a vesícula biliar; a primeira tinha sido uma senhora hindu. Ela então foi operada.
E depois de consolidar a saúde, viajou para a terra de atração de todos os homens naquele tempo, que era a Cidade-Luz: Paris. Ela ia visitar aqueles lugares históricos e queria que minha irmã e eu — eu tinha quatro anos e minha irmã, cinco anos e meio — fôssemos também. Então, alguns parentes diziam para mamãe:
— Para que você leva essas duas crianças? Só vão atrapalhar, não compreendem nada; deixe-as trancadas no quarto com a governanta!
Ela respondia:
— Não sei qual é o futuro deles; talvez tenham uma vida pobre e difícil e nunca poderão vir à Europa! Quem sabe qual é o dia de amanhã, nas revoltas do mundo de hoje? Quero que cada um deles possa dizer: “Eu estive no Louvre, em Versailles etc. Minha mãe me levou até lá.”
Entusiasmo pelo Palácio de Versailles
Assim que cheguei a Versailles, fui tomado por um grande contentamento. Um dos meus tios tinha me dado de presente uma libra esterlina, de ouro, que eu imaginava ter muito valor. E meus pais, minha avó, a família toda iam andando, e eu, maravilhado, voltava-me para trás, olhando para tudo, cheio de admiração. Estava atrapalhando a família inteira, porque eu era pequeno, andava devagar, e minha mãe me dizia:
— Meu filho, vamos, meu filho.
Eu nem sabia falar direito, mas afirmava, com ar de compenetração:
— Mamãe, eu gosto muito dessas “estuatas”.
Eram umas estátuas de Versailles que são muito bonitas, qualquer criança gosta delas.
Em certo momento, eu disse a mamãe:
— Olhe, eu vou comprar essa casa. Avise aqui aos donos que vou comprá-la para mim!
Não sei se percebem que por detrás estava o Marquês de Carabás.
Passeamos por aquele parque; eu estava transmaravilhado! E chegamos de repente a um galpão, onde se guardavam os carros que serviam os antigos reis da França, perto dos quais a carruagem do Marquês de Carabás era nada. A começar que o Marquês de Carabás era uma ficção, aqueles eram carros palpáveis. Eram lindíssimos!
Passeamos por aquele parque, e chegamos de repente a um galpão onde se guardavam os carros que serviam os antigos reis da França, perto dos quais a carruagem do Marquês de Carabás era nada.
Até hoje eu me lembro da impressão que tive ao vê-los. Eram todos abaulados, bombeados, com cristais, panaches; estavam abertos e viam-se dentro todas aquelas sedas, aqueles capitonnés etc. Do lado de fora, verniz Martin, do melhor possível, com desenhos de flores, paisagens. Eu estava encantado!
Por mamãe, eu poderia ficar lá o dia inteiro. Com ela, bem entendido! Mas os parentes fizeram pressão e ela me disse:
— Meu filho, é preciso ir andando.
Respondi:
— Não, não vou!
Meu pai interveio, dizendo:
— Você vai!
Eu disse:
— Fique sabendo que eu não vou!
Fui a uma roda do carro, segurei-a com ambos os braços e afirmei:
— Agora quero ver!
Eu me lembro dele, disfarçando uma risada para fingir-se de zangado, e me dizendo:
— Você vai ver!
Ele me pegou pelas costas e me levou embora.
Ficou-me a última visão do Marquês de Carabás e de sua carruagem.
(Extraído de conferência de 6/8/1983)