sábado, noviembre 23, 2024

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Pertinácia, delicadeza e desafio

Decidida a viver de acordo com o que a Fé lhe indicava, Dona Lucilia levantava uma oposição suave, mas intransponível, aos que desejassem o contrário, mesmo a preço do isolamento. Nos últimos meses de sua existência terrena, porém, quis a Providência confirmar sua fidelidade, embalando-a no cântico de admiração de algumas almas justas.

Para compreender a maneira de Dona Lucilia agir quando eu era menino, ao proteger-me de quem quisesse me perder, é preciso ter conhecido aqueles tempos e visto os modos, os costumes, as regras de delicadeza então vigentes.

Ela era uma pessoa muito bondosa, mas ao mesmo tempo muito séria. Quando não queria uma determinada coisa, levantava uma barreira intransponível: não era, não podia ser e não seria! Todos compreendiam que haveria uma oposição sem nada de furibundo nem de encrencado, mas tão segura que não adiantava insistir.

Negativa que desencorajava qualquer ataque

Essa impostação começava por se verificar no que se relacionava à forma como eu praticava a Religião. Alguns de meus parentes gostariam muito que eu fosse um menino mais ou menos sem Religião, como os outros da minha família formados por eles. Entretanto, não ousavam propor a Dona Lucilia nada a este respeito; ou, se propuseram, ela liquidou a questão, de modo que nenhum deles ousou me dizer uma palavra no sentido de me estimular a não ser religioso, a não ser puro, etc.

Eles sabiam que se algum dito assim chegasse até mamãe, a resposta viria como uma negativa: “Meu filho é meu e não seu, quem dispõe dele sou eu e não você; e, por meu intermédio, quem dispõe dele é Deus. De maneira que eu vou educá-lo segundo Deus quer, e você não se meta. Cuide de seus filhos, se quiser; do meu, não! Dele cuido eu!”

Comigo ela nem tratava do assunto, numa atitude de quem não considerava possível que alguém se intrometesse no caso. O que ela fez foi rezar muito e dizer um “não” preventivo. Está acabado.

“Você vai sofrer muito com o isolamento”

Quando em 1932 arrebentou a Revolução Constitucionalista em São Paulo, minha avó resolveu comprar um rádio para acompanhar o noticiário. Tempos depois ela comentou com minha mãe, a qual me contou o fato sem fazer comentários:

— Mamãe me disse: “Quando eu morrer, Lucilia, quero que esse rádio fique com você” – era ainda um objeto de certo valor naquela época –, “porque você vai sofrer muito com o isolamento, e ao menos o rádio serve para você ter companhia.”

Entende-se tudo quanto isso queria dizer…

Ademais, a saúde de mamãe não era boa. Melhorou muito depois que minha avó faleceu e ela passou a morar sozinha comigo. Dona Gabriela era muito generosa, e sob esse aspecto não havia problema. Mas manter as rédeas da casa, cuidar da criadagem, atender aos que entravam e saíam, constituía um peso difícil de sustentar.

Dona Lucilia tinha paciências enormes; por exemplo, com um sobrinho surdo-mudo que apresentava crises nervosas medonhas. Os pais não aguentavam essas crises, e ela sim. Fechava-se com o rapaz em uma sala e, ao cabo de uma ou duas horas de conversa, ele saía mais sossegado, tranquilo. Era uma manifestação da generosidade dela, mas isso a desgastava.

Por causa disso, durante o período em que morou na casa de minha avó, sua saúde era muito ruim. Ela sofria vários incômodos do fígado. Sentia indisposições horríveis, passava a noite acordada e, de manhã, estava exausta, com a fisionomia desfeita.

No tempo em que minha irmã e eu éramos bem pequenos, mamãe tinha medo de morrer a qualquer momento, e às vezes nos dizia isto para nos preparar. Nós ficávamos assustadíssimos!

Todas essas circunstâncias fizeram de Dona Lucilia uma pessoa que media bem qual era o padrão da felicidade, e que sentia e carregava o peso dos sofrimentos até o fim.

Arquivo Revista
Dr. Plinio com o Sr. João Clá, durante um jantar, em seu apartamento, na década de 1990

Carregando a cruz rumo ao ápice

Nesse sentido, das fotografias tiradas de mamãe nenhuma me agrada tanto quanto uma em que ela já está bem idosa, com setenta e cinco ou setenta e seis anos, mas inteiramente lúcida, movendo-se sem necessidade de apoio, apenas com uma deficiência auditiva que esses aparelhos modernos supriam.

Eu a conhecia tão bem que, ao ver essa fotografia, percebo uma coisa curiosa: ela está muito ansiosa. Nota-se ali como era a adaptabilidade dela: procura fazer a fisionomia que, dentro dos princípios dela, sabia que os circunstantes gostariam. Coitadinha! Eu sei bem, ela estava carregando sua cruz rumo ao ápice.

Em sua fisionomia transparece um tal conjunto de virtudes, vivendo à maneira de enxame na alma dela – mas um enxame santo, não caótico –, que é difícil dizer tudo quanto vejo ali. É um equilíbrio extraordinário de virtudes, um imenso teclado todo posto em ordem.

A nota que aparece muito nessa fotografia é a ordem que mamãe impôs a si mesma, porque estava de acordo com o que o intelecto e a Fé lhe indicavam de como se deveria ser. Há uma resolução de viver dentro e para essa ordem que, com toda a suavidade, revela um traço heroico: deve-se ser de um determinado jeito, acabou-se. Percebe-se uma pertinácia, com delicadeza, e um certo olhar de desafio, como quem diz: “Eu sei que vocês não estão de acordo, mas é assim.” Com ela não se brincava!

A confirmação da fidelidade

A vida de Dona Lucilia foi uma enorme espera que teve um desfecho inteiramente inesperado: nos últimos meses de sua existência nesta Terra, por causa da minha doença1 houve um afluxo torrencial de gente em minha casa e, sobretudo pela insistência do João2 em fazê-la ser notada, ela morreu embalada no cântico de admiração dos que me visitavam.

De fato, minha mãe esperava que toda a sua bondade e todo o ambiente por ela criado reconstituíssem em torno de si um tempo passado, que ia sendo devorado pelo americanismo.

Então mamãe recebeu uma confirmação de que não havia se enganado, e de que tudo quanto ela era estava notório a quem quisesse ver. Foi uma espécie de confirmação da fidelidade dela.

(Extraído de conferências de 14/9/1985 e 6/11/1993)

1) Trata-se da grave crise de diabetes que acometeu Dr. Plinio em dezembro de 1967, obrigando-o a permanecer em repouso no seu apartamento por alguns meses.

2) Dr. Plinio se refere a Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, seu fiel discípulo e secretário pessoal durante mais de quatro décadas, que na época dos fatos aqui mencionados era ainda leigo e contava vinte e oito anos.

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