jueves, noviembre 21, 2024

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Na ausência do “filhão”…

Dona Lucilia, até a extrema velhice, conservou uma ordem em todas as coisas que fazia. Não deixava nada para o dia seguinte, nem adiantava algo sem necessidade. Apesar de sempre preencher bem seu tempo, sentia grande isolamento quando não tinha a companhia de seu filho.

Quando me ausentava de casa por ocasião de alguma viagem, eu percebia que o dia de Dona Lucilia continuava sempre o mesmo. Embora na São Paulo antiga fosse hábito levantar muito cedo, na família dela foi sempre costume despertar e deitar tarde. Ademais, contribuía para esse hábito o fato de ela padecer de uma enfermidade do fígado, e lhe fazia muito bem permanecer em repouso.

Tudo muito ordenado, sem nenhum capricho

Tendo se levantado, ela passava à toilette feita sem nenhum vagar excessivo, mas sem pressa. Na sua vida de dona de casa ela não tinha razão nenhuma para apressar-se. Mamãe era do tempo em que as coisas só se faziam depressa quando havia uma razão que obrigava a isso. A regra era o vagar, e a pressa era um castigo que as circunstâncias impunham.

Tudo quanto ela fazia era muito ordenado, não tinha caprichos. Por exemplo, ela me contou que todas as partes da sua toilette – ela tinha cabelo comprido –, a hora de lavar a cabeça, pentear o cabelo, vestir-se, eram executadas segundo uma mesma sequência. Não variava nem interrompia nunca.

Logo depois, Dona Lucilia rezava um pouco e ia almoçar.

Após o almoço ela se dirigia à sala de jantar. Era um costume na família dela – que vigorava na São Paulo antiga – fazer a sala de estar na sala de jantar. As casas de hoje são diferentes. A sala das refeições é uma, a de estar é outra. No tempo dela as salas de jantar eram sempre algum tanto maiores do que o necessário para a mesa e alguns móveis e as pessoas ficavam ali depois da refeição, prosseguindo comodamente as conversas. Quando estava sozinha, mamãe continuava sentada ali.

As tardes de Dona Lucilia

Mais ou menos na hora em que eu costumava sair, ela se levantava, ia para meu escritório.

Isso tudo variava, porque precisava entrar nas salas, ver uma coisa e outra, etc. A residência era grande, com empregadas em quantidade suficiente, não dava muito trabalho, mas Dona Lucilia gostava de tudo muito direitinho. Nunca deixava para outro dia uma tarefa própria daquele dia, mas também nunca adiantava uma coisa que pudesse ser deixada para o dia seguinte. Toda tarefa era executada na sua hora, até o momento do lanche feito na sala de jantar, entre cinco e cinco e meia da tarde. Habitualmente, a essa hora entrava ali uma luz do sol muito bonita. Mamãe ficava tomando aquele sol e contemplando as árvores da Praça Buenos Aires, que possuía também uma vegetação muito formosa, viçosa, bem cuidada; hoje está minguando com a poluição.

Mais tarde ela fazia novas orações até a hora do jantar, tomado no silêncio. Ela arranjava um jeito de ter o tempo cheio, rezar bastante, conservar a ordem em tudo e não sentir melancolia. Esse era o modo de ela viver.

Alegria com o filho que retorna

Fotos: Arquivo Revista

No período em que fui deputado1, eu passava os dias da semana no Rio de Janeiro. Não havendo avião naquele tempo, na sexta-feira à noite tomava um trem para São Paulo e chegava no sábado cedo. Comungava, depois ia para casa e ficava com mamãe até domingo à noite, quando viajava de novo para o Rio.

Quando terminou o meu mandato, ordenei que se preparassem caixotes com os objetos que eu tinha levado ao Rio e tudo foi trazido de volta para São Paulo. Os caixotes chegaram antes de mim, porque desejei ver sair tudo do Rio a fim de evitar que alguma coisa ficasse para trás e desaparecessem os livros, papéis, roupas, uma porção de coisas que eu não podia perder.

Ao entrar em casa, mamãe me fez muita festa com todas as formas de agrado possíveis. E, conversando comigo, ela disse:

Fotos: Arquivo Revista

“Filhão, fiquei tão contente com os primeiros caixotes que chegaram que eu, já velha – ela tinha uns 60 anos –, fiz uma infantilidade. Quando a empresa de transporte os deixou em casa, não tendo força para removê-los eu beijei cada um deles de contentamento, porque senti que era você que estava começando a voltar.”

Percebi, na sua alegria, o isolamento em que ela estava.

Esse era o sistema de vida de Dona Lucilia até sua morte, ocorrida quando tinha 92 anos. Na extrema velhice havia a mesma ordem em todas as coisas que fazia.v

(Extraído de conferência de 19/1/1983)

1) Durante a Constituinte de 1934.

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