Uma das mais lindas relí­quias da Idade Média francesa é, sem dúvida alguma, a Catedral de Notre-Dame de Paris. Dificilmente alguém olhará o esplendor religioso desse monumen­to gótico, sem sentir por ele verda­dei­ra veneração. Quer nos seus aspec­tos externos, quer nos internos, é uma tal obra-prima de bom gosto, de ordem, de sobriedade, que sempre me leva a parafrasear em seu favor as palavras da Escritura: é a igreja de uma beleza perfeita, glória e alegria do mundo inteiro!

Perfeita em cada pormenor, em ca­­da seqüência de suas colunatas e arcarias góticas, assim como nas suas galerias de imagens de reis ou de san­­tos, dispostos em tamanhos, alturas e distâncias irretocáveis. Perfeita na gran­de rosácea central de sua fachada, que outra coisa não é senão uma aureóla magnífica para a mais magnífica de todas as criaturas, Maria Santíssima, cuja imagem ali se apresenta à devoção e contemplação do povo fiel.

Maravilhosa na profusão de grupos esculturais espalhados ao redor de to­do o seu gigantesco corpo, ta­lhados em pedra que, de longe, mais parece tingida de ouro, e tão cui­da­dosamen­te cinzelados que mereciam maior realce: cenas da vida de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, o Natal, a Apresentação no Templo, a ma­tan­ça dos inocentes, a fuga para o Egito, a Coroação da Rainha do Universo… Episódios do quotidiano medie­val, fatos edificantes daquela época incomparável da Cristandade, como a história do Monge Teófilo, ludibria­do pelo demônio e socorrido pela Mãe de Misericórdia, etc., etc.

Bela, ainda, a nos tolher a pala­vra, na riqueza de seu interior recortado de colunas e ogivas, resplandecente na gloriosa policromia de seus vitrais, ou nos encantadores frisos de bai­xos-relevos que ornam o coro, os quais, numa exuberante sinfonia de cores e detalhes, retratam os mais significativos momentos da vida de Jesus. Só por esse Evangelho escul­pido em ma­deira já valeria a pena viver em No­tre-Dame !

Acima e abaixo, aspectos dos frisos com cenas do Evangelho; à esquerda e à direita, grupos de esculturas no exterior da Catedral; na página anterior, a grande rosácea e a galeria das imagens de reis


E o requinte da arte cristã, acen­tua­do pelo savoir-faire único da alma fran­cesa, transborda para os jardins que envolvem o maravilhoso templo, pa­ra os canteiros bem calculados e bem cuidados, para a vegetação que serve de moldura às enormes ogivas e à ele­gante, fabulosa agulha central que se lança para o céu. É a célebre flecha concebida por Viollet-le-Duc no século XIX, numa espécie de rea­lização saudosa, nostálgica, do aca­bamento perfeito que não estava inteiramente na consciência dos medie­vais, mas foi explicitado pelos seus descenden­tes, homens de uma post-Idade Média baseada na História. E sempre me pa­receu sublime a idéia de acrescentar essa flecha a Notre-Dame , co­roan­do a silhueta de uma catedral imortal.

No seu conjunto, a beleza de No­tre-Dame refulge de uma luz excelen­te, completa, contínua e tranqüila, que cativa nossa admiração e eleva nosso espírito à seguinte reflexão: o amor e o entusiasmo que temos pelos te­sou­ros da Civilização Cristã seriam incompreensíveis, se não partissem da consideração de Nosso Senhor padecendo e mor­rendo por nós na Cruz.

Sim, na Paixão e nos acerbís­simos sofrimentos d’Ele, a cada lanho que os flagelos cruéis arrancavam de seu corpo sagrado, a cada gemido que Ele exa­lava, estava-se preparando todas as pulcritudes que a alma católica en­gendraria ao longo dos séculos. Sem o holocausto de Jesus, a Europa medieval não teria tido virtude nem elevação de espírito para realizar monu­mentos tão extraordi­ná­rios como esse.

Lembremo-nos então disso: quando as carnes e o sangue pre­ciosíssimos do Divino Redentor caíam e se derramavam pelos chãos de Jeru­sa­lém, Ele estava construindo a beleza do reino d’Ele na terra, como Profeta que realiza sua própria profecia, pensando num Carlos Mag­no, numa Sainte-Chapelle , numa No­tre-Dame de Paris…                 v

Catedral de beleza perfeita, alegria do mundo inteiro, Notre-Dame refulge de uma luz excelente, completa, contínua, fruto dos acerbíssimos padecimentos de nosso Divino Redentor…