Em meio aos perigos e tribulações da guerra, o Marechal Foch procura criar no seu local de trabalho uma atmosfera de recolhimento, nimbado pela serenidade própria a uma abadia beneditina.

Dr. Plinio continua seus substanciosos comentários ao artigo do General Weygand sobre o comandante das forças aliadas na Primeira Guerra Mundial.

Palavras do Weygand:

Creio ter dito o bastante a respeito do caráter essencialmente pessoal do comando de meu chefe, de sua atividade, sua necessidade de contato direto com os homens, para se apreender o panorama da vida bem regulada que acabo de traçar, como o fundo de quadro de sua existência, a parte que somente seus colaboradores imediatos conhecem, aquela cujo trabalho prepara o outro, todo exterior.

Enquanto encarniçados combates se desenrolavam nos campos franceses, o Marechal Foch trabalhava em seu estado-maior, de modo incessante, mas “sem febre e sem ruído”…

Fotos: L. Werner / Arquivo revista
Marechal Ferdinand Foch; abaixo, cena da Primeira Guerra Mundial

Fotos: L. Werner / Arquivo revista

Equilíbrio entre burocracia e ação pessoal

Está descrito de modo magnífico, não o quadro todo, mas seu fundo, onde se planeja o trabalho externo. É a parte íntima, doméstica, na qual se percebe a infra-estrutura, a base de suas atividades. Daí o imenso interesse que temos em comentar esse artigo.

A todo momento, como se viu, o general abandona esse quadro para exercer sua ação onde fosse necessário. Suas relações com os comandantes de exército ou corpos de exército são constantes.

Após ter mostrado como Foch não era “quadrado” 1, Weygand se refere aqui ao descortino de seu chefe.

Nada, portanto, de menos sedentário, de menos burocrático do que sua existência de guerra. Jamais ele se julgou dispensado do ato pessoal, pelo envio de uma instrução ou de uma ordem escrita. É a homens que ele comanda e com eles faz questão de combinar seus empreendimentos. Procura ter com eles freqüentes contatos.

Havia, portanto, um equilíbrio, uma harmonia entre a burocracia e o contato pessoal.

Trabalho no silêncio “calmo e confiante”

Em torno do general, seu estado-maior trabalha no silêncio e recolhimento.

Frase estupenda! “Silêncio e recolhimento”. Como isso é diferente do que se imagina como atividade de um estado-maior comum!

Nosso chefe não tolera nem tagarelice nem tempo perdido. Oficiais de visita [ao estado-maior] registraram suas impressões: “Ter-se-ia imaginado — diz Monsieur René Puaux, que escreve suas lembranças da Batalha de Yser — uma febre intensa, um perpétuo vai-e-vem de oficiais do estado-maior, enlameados, ordens nervosas, portas que batem, uma visão napoleô­nica de atividade febril. Não. É o silêncio calmo e confiante”.

A comodidade desfrutada no estado-maior exigia uma dedicação ilimitada dos oficiais: qualquer negligência deles poderia causar sacrifícios inúteis na frente de combate

Fotos: L. Werner / Arquivo revista

Fotos: L. Werner / Arquivo revista
Cenas da Primeira Grande Guerra

M. Gustave Babin, que conheceu o castelo de Bonbon em 1918, elogiou “a quietude, a paz serena que reinam nessa mansão, paz de uma abadia beneditina, onde se trabalha incessantemente, mas sem febre e sem ruído.”

Quem haveria de dizer algo semelhante do estado-maior do general Foch?! Se esse escritor acrescentasse que ali todos tinham os olhos continuamente postos em Nossa Senhora e com espírito sobrenatural, definiria a nota capital de uma abadia beneditina. Eis aí uma lição para nós: trabalhar constantemente, sem febre, sem perder o fôlego, sem barulho. E, acrescento eu, sem vaidade. Porque se houver vaidade, torna-se teatro.

Por exemplo, se um homem entra numa sala para dar uma notícia não muito importante, bate a porta e fala alto para chamar a atenção sobre si e valorizar-se, destrói a eficácia de seu trabalho. Este precisa ser feito com desprendimento.

Esforço comum, sob a influência do chefe

Continua Weygand:

Um convento, se se quiser, onde cada qual trabalha com fervor, na irradiação do chefe.

Quer dizer, é a ação feita em comum, que não admite critérios individuais seguidos de maneira arbitrária. Não. Trabalha-se na atmosfera criada pela personalidade serena e recolhida do chefe.

O comandante tem em suas mãos a vida do soldado. Um erro, uma negligência de sua parte, podem ser causa de perdas e sacrifícios inúteis, que seriam criminosos. O general Foch não deseja que, ao seu redor, se esqueçam de que se o estado-maior se beneficia de uma vida mais fácil e menos exposta do que a da tropa, é para permitir aos oficiais se darem sem reserva à sua tarefa.

Portanto, essa comodidade exige uma dedicação sem limites, dada a gravíssima responsabilidade de cada um. Qualquer negligência, 500 homens podem morrer.

Ele acha cruéis os sacrifícios reclamados a cada dia de guerra, o sofrimento que ele padece em razão disso acentua aos seus olhos o dever de não pedir [aos soldados] senão os sacrifícios indispensáveis e eficazes.

Essa é a tarefa do estado-maior: calcular o trabalho das tropas de maneira que um militar não seja obrigado — devido ao relaxamento de um dos oficiais que esqueceu tal papel — a andar 50 quilômetros a mais. Ou seja, a responsabilidade moral do estado-maior, para quem tem consciência, é extrema. Isso explica a atmosfera de recolhimento de uma abadia beneditina.

Este sentimento não se exterioriza nele em grandiloqüentes declarações verbais. Manifesta-se pelas exigências que ele impõe. Diante de tão altas responsabilidades, nenhum relaxamento lhe parece admissível, nenhum esforço suficiente.

Claro está, pois é a contrapartida.

Fotos: L. Werner / Arquivo revista

Estrutura e missões dos gabinetes do estado-maior

Deste estado-maior, eu disse quais eram os órgãos essenciais.

O 3º Bureau é o mais encorpado. Seu chefe e dois oficiais se ocupam mais especialmente em estabelecer e encaminhar os documentos principais (sobre os quais voltarei a falar), elaborar as ordens secundárias relacionadas com a execução dos movimentos, a classificar as zonas e estradas, e reunir todos os dados úteis para o general tomar suas decisões.

Os outros oficiais são agentes de conexão, em princípio ligados essencialmente a um exército que visitam, do qual devem ter um conhecimento aprofundado, por essas tomadas de contato freqüentes e regulares, como também pelo estudo de suas ordens, suas disposições e seus relatos. O 2º Bureau é composto, além de seu chefe, de apenas dois oficiais.

Compreende-se, pois a espionagem está espalhada em todos os exércitos. Ali permanece somente a cúpula.

O grupo de exércitos — quer dizer, o estado-maior — não dispõe de órgãos propriamente de pesquisa, mas recebe suas informações do grande quartel-general dos exércitos que ele comanda e dos exércitos aliados vizinhos. O chefe do 2º Bureau estabelece a síntese desses dados, assinala, quando necessário, as lacunas e chama a atenção para as informações complementares a serem procuradas.

Quer dizer, ele prepara um quadro para uso do comandante.

O general Foch trabalha diretamente com seu chefe de estado-maior — o próprio Weygand — que lhe apresenta todos os documentos importantes que chegam até ele e transmite ­suas ordens. Há uma regra em cuja estrita aplicação Foch se mostra particularmente exigente: todo documento, toda informação que valha a pena, devem lhe ser entregues ou submetidas sem perder um minuto, esteja ele ocupado ou não.

Num artigo tão bem escrito, Weygand insiste mais de uma vez nesse ponto: qualquer dado mais significativo deve ser imediatamente apresentado ao Foch. Porque, diante das exigências da guerra, isso realmente é de suma importância.

A importância de uma formulação de frase

É em minha presença que o general recebe o chefe do 2º Bureau e sou eu quem trago os oficiais de ligação, se se encontram em período ativo de operações, antes de sua partida, ou quando voltam de missão. É útil acrescentar que se o general encarregou um oficial de um trabalho especial, ele não se dispensa de tratar diretamente com ele; de minha parte, não perco nenhuma ocasião de pôr meus oficiais em contato com o grande chefe.

Weygand não é interceptador, e se compraz em que seus subordinados tratem com alguém mais importante que ele.

Quando o general recebe os oficiais de ligação, antes de partirem, assegura-se de que estão bem compenetrados da missão deles junto a “seu” exército, e do sentido de suas próprias instruções. Ele se encarrega muitas vezes de levar, para o comandante do exército, mensagens escritas ou verbais e, nesse último caso, não é raro que lhes faça tomar nota de uma fórmula característica, a fim de que seja bem sua palavra que chegará ao destinatário.

Com particular cuidado, Foch zelava para que suas ordens fossem fielmente transmitidas aos comandantes das tropas

Fotos: L. Werner / Arquivo revista
Acima e na página 24, soldados franceses na Guerra de 14-18

Veja-se a importância da fórmula a qual, para um homem desse valor, parece indispensável. Percebe-se, também, o receio que ele tem do intermediário negligente, abobalhado e preguiçoso, que não compreendeu o alcance da mensagem e por isso não irá reproduzi-la com precisão. Então ele diz: “Escreva assim e leve essa fórmula para o comandante”. Se o subordinado não obedecer, conforme o teor da mensagem, pode ser severamente punido.

Quer dizer, é algo a ser tomado com inteira seriedade.

(Continua em próximo artigo.)

1) Adjetivo empregado por Dr. Plinio, proveniente do termo “quadratice” com o qual ele significava uma inveterada estreiteza de vistas e, em conseqüência, de iniciativa (cf. “Dr. Plinio” nº 103).