Ao longo de toda sua vida, Dr. Plinio desejou ardentemente o Reino de Maria, e tudo que ele fazia tinha como fim último sua implantação. Nesta conferência, afirma ele que as instituições do Reino de Maria deverão guardar o espírito, a mentalidade dos que deram o impulso inicial, porque sem isso não se chegará à perfeição suprema.

Pediram-me para falar a respeito do Reino de Maria e da patriarcalidade nele. Como nascerá o Reino de Maria? O que tem que ver com isso a patriarcalidade?

Arquivo Revista
Dr. Plinio em outubro de 1988. Acima, Sainte-Chapelle – Paris, França

As melhores coisas o homem, muitas vezes, faz sem planejar

Quando eu era jovem, uma vez ou outra, tentei traçar para mim mesmo o quadro do Reino de Maria. Eu não achava compreensível o seguinte: como há uma coisa a qual eu deseje tanto e que não seja capaz de retraçar, de definir. Se quero, sei definir. Se não sei definir é porque não sei o que estou querendo; então, sou um bobo. Parece um raciocínio muito cogente, que aperta bem.

Entretanto, o raciocínio apertante é uma coisa, e o raciocínio quadrado é outra; este não aperta. O raciocínio verdadeiramente bem feito pode agarrar um homem, mas sem deixar nele nada de contundido. Pelo contrário, o raciocínio, como esse que fiz há pouco, deixa o interlocutor sem ter o que dizer; mas é apenas porque ele é jovem, inexperiente, por qualquer outro motivo; se ele pensasse bem, veria que o raciocínio procede de um lado errado. E, procedendo de um aspecto errado, ele todo sai trocado. E nada pior do que apertar na base do trocado, do errado. Seria mais ou menos como usar um sapato torto. Andar com isso é um tormento, não se anda.

Vendo como começou a nascer a Idade Média, não tardei em perceber que ela não teve planejadores. E a sociedade patriarcal ninguém a planejou, ela se fez, simplesmente. O que quer dizer que as melhores coisas o homem, muitas vezes, tem feito sem plano.

Antonio Lutiane
Pórtico da Catedral de Colônia, Alemanha

Seria porque é um tonto incapaz de planejar? Não. É que a ação dele vem de uma ordem mais profunda do que a mera ordem do pensamento. É uma ordem das tendências virtuosas, em que a boa disposição do senso do ser, do senso católico, a conaturalidade com a virtude, vão fazendo com que do homem emanem hábitos, gestos, costumes; pouco depois, sistemas de arte, estilos de vida, instituições políticas, sociais, etc., as quais florescem a partir do chão sem que seja necessário planejar.

A razão deve controlar o que vai nascendo para evitar as coisas tortas tão frequentes na natureza. Controlar, sim; planejar, não. Deixa-se ir fazendo e vai-se controlando e interpretando aquele impulso inicial que vai saindo, para onde ele tende, como ele é; explicá-lo aos nossos próprios olhos e saber com isto desenvolver aquilo. Assim é que verdadeiramente se fazem as coisas que tomam sentido.

Consequências da civilização mecânica

Se isto está claro, ponho o princípio: o Reino de Maria será assim! Quer dizer, quando eu, na exposição anterior, falava do patriarca, que levantava antes de todo mundo, via as tendas armadas no campo e o dia que começava a amanhecer, e o patriarca de longa túnica branca com um bastão na mão e uma espécie de olifante, que ele soava com o seu toque; aos poucos as tendas se movimentavam, a gente ia saindo, etc., a vida vinha emergindo do sono e se mostrando à luz do dia. O patriarca nunca pensou: “Farei tais tendas e vou arranjar uma corneta com um chifre furado, pois ficará bonito de manhã, e tomarei uma atitude bonita, vou pegar um bastão grande e levantá-lo para o horizonte…” Não. Se ele fizer assim, sai errado…

Quando as inteligências estão bem ordenadas e os instintos, as tendências, pulsam de acordo com a virtude, as coisas vão saindo maravilhosas naturalmente. De maneira que, para nós termos uma ideia de como será o Reino de Maria, deveríamos indagar como será a virtude, como serão as inteligências no Reino de Maria, para nos perguntarmos, vagamente, o que dali poderia nascer. Nessas condições, poderemos ter uma ideia do que o Reino de Maria será.

O homem contemporâneo está habituado a uma civilização mecânica que trepida com toda a vibração da máquina e tem velocidades muito superiores à do ser humano; e sente, desde pequeno, todos seus instintos ajustados a isso. A consequência é que o desejo da velocidade, do movimento, do inopinado, do barulho, cresce muito mais do que normalmente cresceria numa época de tranquilidade e de reflexão.

Qual é, por sua vez, o resultado disso? É uma espécie de hipertrofia de exagero, de excesso, que se dá até na fantasia. A fantasia, quando começa a imaginar as coisas, representa-as passando depressa e quer que os quadros passem rápido. O espírito vive correndo e, quando deseja fazer uma coisa devagar, não se ajusta. Por quê? Porque está habituado ao corre-corre.

É preciso acrescentar que é fora de dúvida que essa efervescência assim é latina.

Posso falar bem à vontade porque sou latino. É uma efervescência latina a cem por cento, e não se sabe em qual dos dois veios americanos da raça latina é maior: se no veio hispano ou no luso. No veio hispano, essa efervescência se dá em movimento: é preciso gritar, falar, etc. No veio brasileiro, luso, se dá com algo disso, mas é necessário, sobretudo, cutucar, dizer uma coisa… O belisca-belisca, o cutuca-cutuca, um diz para o outro, outro diz para um terceiro, o fala-fala, o mexe-mexe um com o outro são incessantes.

Compreendo muito bem que isto cause surpresa aos não latinos, porque não é só a raça — acho que o fator raça não tem muita importância no caso —, mas o ritmo da vitalidade, a tradição, os hábitos nos povos anglo-saxões e germânicos são completamente diferentes e a demarragem é outra.

O brasileiro e o latino em geral demarram num pulo. O alemão ou o anglo-saxão precisa passar por várias velocidades antes de demarrar.

Tudo isso é a vivacidade própria à raça, à tradição, aos costumes, etc.

Mas não há alguma coisa da velocidade da máquina dentro disso? Algo de excitação da civilização mecânica com tudo quanto ela apresenta de alucinante, de corre-corre, etc.? No fundo, há apenas um hábito, ou também um vício? É uma pergunta que se pode fazer.

Arquivo Revista
Cristo Rei

Grand Retour: graça que descerá e mudará completamente os homens

Com o Grand Retour1 as mentalidades devem ser reformadas até o fundo, pela graça do Divino Espírito Santo. E sem que as nações percam as suas boas características, elas, em alguma medida pelo menos, devem ser libertadas dos seus maus hábitos e de suas más tendências. Alguma coisa fica, porque o homem tem que lutar contra seus maus hábitos e más tendências. A vida é uma luta.

E não vai ser feita uma vida fácil no Reino de Maria. Se fosse fácil, não valeria nada. Não tenham ilusão de que o Reino de Maria vai ser um pirão. Isso não valeria dois caracóis. O Reino de Maria deve ser da vida dura, mas com a alma forte para levar a vida adiante! Com sacrifício, é evidente. Porém com um amor ao sacrifício, uma compreensão da ascese, do reto, do calmo, do tranquilo, e uma seriedade que não é a de um campo de concentração.

Não é uma seriedade parecida com nada do século XX; é aquela superior seriedade que se sentia tomando contato com Nosso Senhor Jesus Cristo: transcendente. Ele, de Quem o Evangelho não conta uma só vez que fosse visto rindo. E no Reino de Maria se rirá. Não vai ser uma era sem riso, mas ficará indicado que esse riso nunca romperá a seriedade. E será estabelecido um equilíbrio de alma que, sem eliminar o que tem de bom e de necessário na alegria, saberá distinguir palhaçada e comicidade de um lado, e alegria e riso da alegria de outro lado, como coisas fundamentalmente diversas.

Analisando o Novo Testamento, encontramos todas as fragilidades dos Apóstolos. Nosso Senhor ressuscitou e apareceu para eles, mas as fragilidades não desapareceram. Pelo contrário, continuaram a dar mostras até o momento em que, estando no Cenáculo em oração com Nossa Senhora — Ianua Cœli, Ela é Porta do Céu —, a porta se abriu e passou o Espírito Santo: uma língua de fogo rica, opulenta, desceu sobre a Virgem Santíssima e depois se espalhou por todos os Apóstolos. E pela ação do Espírito Santo ficaram outros homens.

E eles que eram tímidos, inibidos, sofriam de uma espécie de sensação de inferioridade diante da civilização judaica, da civilização greco-latina, etc., que se encontravam em Jerusalém e tinham todos os defeitos que se conhecem, eles saíram outros. Foram para a praça e começaram imediatamente a pregar, com tanto calor e com tanta eficácia, que as conversões se faziam aos montes.

Sergio Hollmann
Pentecostes – Catedral de Valência, Espanha

E os Apóstolos pregando coisas lucidíssimas e admiráveis, entretanto alguns diziam que eles estavam ébrios, porque falavam em todas as línguas. E cada um entendia na própria língua. Quer dizer, o seu horizonte mental se abriu e tudo foi outra coisa. A ação da graça entrou até o fundo de suas almas e os alterou. Daí começou a nascer, sem planejamento — Nosso Senhor deu os princípios fundamentais e os traços essenciais da estrutura —, a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, que deu nesta maravilha a qual a tristeza dos dias de hoje não conseguiu destruir.

O Grand Retour naturalmente não será um fenômeno com a densidade da vinda do Espírito Santo sobre os Apóstolos, mas um fenômeno nesse gênero: alguma graça que descerá e mudará completamente os homens. A partir daí um mundo começará a nascer.

E, por causa disso, as nossas almas melhor se preparam para o Reino de Maria, vendo o que há de ruim atualmente, do que prevendo o que vem de bom, porque por aí nós nos preparamos para conhecer e admirar o que virá.

Do impulso inicial à perfeição suprema

Por isso, nós poderíamos tomar a ponta do que falei a respeito do Patriarcado e nos perguntar o seguinte: se o Patriarcado é apenas algo pastoril, aquela situação primitiva de pastores que vão se transformando num Estado, num país, numa nação, mas não são Estado, nem nação, nem sequer ainda cidade — este foi o quadro que eu tracei —, se o Patriarcado é somente isso, qual é a aplicabilidade dele num país inteiramente constituído, que tenha chefe de Estado, organização, ordem, civilização, progresso?

Era preciso tomar a noção de Patriarcado no que ela tem de mais profundo. Em outra conferência, falei do bulbo ou do elemento inicial do cedro do Líbano, ou de qualquer outro vegetal, que contém em si toda a planta e tem isto de augusto: é algo no qual a coisa enorme já está contida e que, no cedro do Líbano, por exemplo, dorme uma árvore dentro daquela bolota, em geral feia; não há raiz bonita.

Guillermo Asurmendi
Santa Maria dos Anjos (a Porciúncula) – Assis, Itália

Lembro-me de que usei esta metáfora: se o cedro fosse capaz de uma intelecção, e pegássemos do fundo da terra o bulbo que está no cedro, mas do qual ele não vive mais porque deitou raízes opulentas e vive de si, e o puséssemos numa mesinha, perto do cedro, este, que não se curva diante de nada, nem das tempestades, diante do bulbo se curvaria: “Tu és minha causa, por isso há em ti uma ciência, uma sabedoria da qual eu nasci, uma forma qualquer de conhecimento, que levarei dezenas de anos ou séculos para adquirir. Aconselha-me, eu te reverencio!”

A civilização patriarcal leva-nos a não só ver esse nexo na vida de família, mas também a ter um grande respeito e um grande senso de continuidade de tudo em relação às suas próprias nascentes. E este é um ponto muito importante, de maneira tal que, por exemplo, em Assis, há uma igrejinha — acho que é de Nossa Senhora dos Anjos da Porciúncula — que é uma capelinha na qual, antes de tudo, São Francisco de Assis esteve. Essa capelinha, em certo sentido, está nas nascentes da Ordem Franciscana, que depois deitou raízes e galhos pelo mundo esplendidamente: torrentes de santos, obras de piedade, de apostolado e de tudo, de todo tamanho e de todo jeito, através dos séculos.

O que fizeram os franciscanos? Construíram uma basílica enorme naquele lugar, mas não destruíram a capelinha, que ficou guardada, protegida na sua velhice pela força da basílica nova. Ela existe inteirinha, com telhado e tudo, dentro da própria basílica. É claro que as pessoas, quando querem rezar em condições de receber a graça mais preciosa do franciscanismo, procuram orar na capelinha. A capelinha é o bulbo. Ali a Ordem Franciscana tem seu cedro, o qual protege, com sua massa, o bulbo precioso.

Seria ridículo que os franciscanos pensassem: “Nossa Ordem é tão grande, fica feio que tenha nascido de uma capelinha tão pequena e tão simples…” Seria mau espírito, uma coisa tão horrível que não vale a pena imaginar. Pelo contrário, devem dizer: “Olha, ela é tão pequenina, mas continha, como no seu bulbo, tudo quanto está aí pelo mundo.”

Isto deveria levar todas as instituições a proteger todo o seu passado, e, portanto, a preservar com respeito e com veneração tudo aquilo de que provêm. Não só fisicamente tal objeto, tal monumento ou tal coisa, mas a guardar o espírito, a mentalidade dos primeiros que deram o primeiro impulso, porque sem essa inspiração do impulso inicial é difícil chegar-se ao fim último, à perfeição suprema.

Malefícios da falta do senso de patriarcalidade

Então, dou um exemplo lamentável. A cidade de São Paulo — não a São Paulinho de meu tempo de menino, mas a São Paulinho microscópica, da época de Anchieta — formou-se no centro, no chamado Pátio do Colégio. E ali Anchieta construiu com taipa — é o material de construção mais modesto que há e muito adequado ao nosso clima, porque ele guarda o calor nos dias frios e o frio nos dias quentes — uma capelinha minúscula, primitiva, onde os jesuítas foram pondo as suas primeiras imagens, etc., e na qual os índios iam rezar, dirigidos pelos padres dos quais alguns, dentro de mais algum tempo, iam ser mártires, portanto estar em condições de ser canonizados.

Um dos governos do Estado de São Paulo mandou arrasar essa capelinha, derrubando todas essas tradições. Razão, superficial, mas inaceitável, é que a capelinha era muito feinha, feita de taipa e não representava o progresso que São Paulo moderno devia representar.

Primeiro derrubaram com o consentimento da maioria; passado o frenesi, veio a reflexão e com esta uma sensação da besteira feita, do crime cometido: não deveria ter sido destruída.

Isso maturou, maturou e pouco antes do IV centenário, ou algo assim, todo mundo em São Paulo pediu para se construir ali o fac simile completo da capela. Está construído, mas já não é o original.

Quer dizer, essas reconstruções servem como ato de reparação, são úteis didaticamente para que as gerações novas tenham uma ideia de como foi, mas a coisa está destruída, e não se recompõe. É evidente.

Isto é falta, neste sentido da palavra, do senso de patriarcalidade, por onde a cidade de São Paulo se prendia às suas raízes e adquiria daí, no plano sobrenatural — uma vez que se tratava de uma igreja católica —, mas também no plano cultural, no natural, elementos psicológicos para chegar ao termo de sua formação, de seu desenvolvimento; isto desaparecia. E com este desaparecimento, a cidade levava um golpe.

The Photographer (CC3.0)
Pátio do Colégio, São Paulo, Brasil

Ora, se consideramos as cidades modernas, sobretudo aqui na América, notamos serem feitas, em geral, na base de destruição de coisas dessas, e de construção de coisas novas, com ruptura da tradição patriarcal.

Algo que se dá frequentemente, por exemplo, nas grandes cidades da América Latina — no Sul dos Estados Unidos, que é mais tradicional, talvez seja mais raro, no Norte talvez seja mais frequente, não tenho ideia; no Canadá também não sei dizer — é o seguinte.

Constrói-se um bairro que representa o apogeu de uma determinada classe, de uma mentalidade, de um determinado modo de ser, com base numa situação socioeconômica. Por exemplo, em São Paulo, o bairro dos Campos Elíseos, depois o de Higienópolis, construídos na época da riqueza do café, etc., em que o café era a coluna da grandeza econômica do Brasil.

Em determinado momento, cria-se um bairro novo, por exemplo, nos Jardins. Então, as residências antigas são abandonadas sem razão, pelo frenesi de construir uma casa no estilo novo. E o bairro antigo, com suas mansões, sua dignidade, ou é destruído para dar lugar a casas modernas de quinta categoria, ou naquelas mansões vai viver a degradação: ficam transformadas em cortiços, quando não em casas de prostituição. Falta de patriarcalidade.

A velha Faculdade de Direito de São Paulo era o convento antigo dos franciscanos, todo ele cheio de tradição do tempo dos franciscanos e do tempo posterior; tradição que muitas vezes não era de nenhum modo a nossa. Essa faculdade foi arrasada em determinado momento, e foi construído aquilo que está lá. Não tem tradição nenhuma. Perdeu-se a continuidade. Mas perdendo-se certas continuidades, algo do espírito se perde.

Há no mundo moderno mil contrapatriarcalidades dessas, que são o contrário da continuação tradicional do Reino de Maria.

(Extraído de conferência de 4/1/1986)

1) Do francês: Grande retorno. No início da década de 1940, houve na França extraordinário incremento do espírito religioso, quando das peregrinações de quatro imagens de Nossa Senhora de Boulogne. Tal movimento espiritual foi denominado de “grand retour”, para indicar o imenso retorno daquele país a seu antigo e autêntico fervor, então esmaecido. Ao tomar conhecimento desses fatos, Dr. Plinio começou a empregar a expressão “grand retour” no sentido não só de “grande retorno”, mas de uma torrente avassaladora de graças que, através da Virgem Santíssima, Deus concederá ao mundo para a implantação do Reino de Maria.