Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em São Paulo, no início do século XX

Na década de 1920, a sociedade, influenciada pela Igreja Católica, possuía polidez, distinção, elegância. Mas tudo isso foi perecendo pela influência da Revolução. Fala-se da invasão dos bárbaros que arruinaram o Império Romano do Ocidente. Porém, a entrada da Revolução escangalhou a civilização mais do que a invasão dos bárbaros.

Desde minha mais tenra infância, fui considerando a Igreja Católica Apostólica Romana com enlevo cujo fundo era a Fé. Como a ideia de uma instituição divina foi se formando aos meus olhos?

Semelhante aos bancos de coral

Eu via as pompas paroquianas. A Igreja do Sagrado Coração de Jesus não era propriamente uma Matriz, mas a capela de um colégio, situado na Paróquia de Santa Cecília. Igreja de dimensões modestas para nosso olhar de hoje em dia, porém grandes para a São Paulinho daquele tempo, onde eu entrava cheio de respeito porque me parecia um grande monumento. Sempre fui muito atraído por tudo quanto é monumental, imponente, grandioso. Eu me adentrava cheio de respeito pelo edifício e pelo que lá se passava. Graças a Deus tinha Fé e sabia ser ali a Igreja verdadeira do Deus verdadeiro, e era levado sobretudo pela adoração a Deus presente no Santíssimo Sacramento.

J. P. Ramos
Igreja do Sagrado Coração de Jesus – São Paulo, Brasil

Eu ia lá para assistir às cerimônias, à Missa, à bênção do Santíssimo, de vez em quando um casamento, mas tinha minha atenção voltada para um ponto especial, que só consegui explicitar mais tarde, mas foi criando densidade no meu espírito.

Realmente, a explicitação não é senão o último afloramento de uma verdade. Assim como os bancos de coral são formados no oceano, a partir bem do fundo e vão subindo – em certo momento aquilo aflora e constitui uma ilha –, isso de modo semelhante também ocorre na mente humana. São impressões que vão se sedimentando e se colocando de modo harmônico umas junto às outras, e constituem no subconsciente a enorme torre “submarina” de uma convicção ou de uma ideia que vai surgir. Em certo momento dá-se a explicitação na qual a ideia acaba de se formar e nascer. Vou descrever um pouco como se deu comigo.

Gestos, atitudes, modos de falar que exprimem a mentalidade

Desde pequeno, eu era muito atraído pelas formas e sobretudo pelas cores. Agradava-me o colorido da pintura de um mosaico sobre o tabernáculo, representando o Padre Eterno, tendo ao peito uma pomba, símbolo do Espírito Santo, e o Santíssimo Sacramento, indicando a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Era tudo muito adequado.

J. P. Ramos
Igreja de Santa Cecília São Paulo, Brasil

O tabernáculo, que me parecia feito de ouro, era espesso, sólido, bem trabalhado. Os candelabros, os vitrais, as pinturas nas paredes – sóbrias, distintas, tranquilas –, as formas dos paramentos litúrgicos, os gestos e as palavras do celebrante – o latim, língua tão nobre que eu não entendia e ficava acima da intelecção comum, sendo própria para os doutos, homens de valor superior –, tudo isso somado ia me impregnando de mil impressões afins com a calma que é um dos aspectos da virtude da temperança. Aquilo me parecia harmonioso, sério, coerente, estável, elevado, com um certo reluzimento sobrenatural que eu não sabia definir.

Divulgação (CC3.0)
Basílica de Santo Antônio do Embaré – Santos, Brasil

Havia muita relação harmônica também com a música do órgão, com a atitude dos fiéis enquanto o padre celebrava. E havia a coerência disso tudo com a ideia de que o sacerdote era um ser superior, escolhido dentre o povo e chamado por Deus para uma missão de uma intimidade especial com Ele, fazendo do padre uma pessoa ungida, separado dos outros homens, e colocado acima deles para o bem da humanidade. Uma ponte, ao pé da letra, entre Deus e os homens. O sacerdote é o pontífice, palavra que designa aquele que faz o papel de ponte. Depois, a ideia de que o padre não se casa e, portanto, não se mistura nem sequer com as alegrias santas do lar, criando em torno dele um isolamento meio misterioso e sacral que o reveste de uma respeitabilidade toda especial.

J. P. Ramos
Igreja do Sagrado Coração de Jesus – São Paulo, Brasil

Aos poucos fui notando como em todas as igrejas que conhecia, ou cuja fotografia via ao folhear revistas, eu tinha a mesma impressão, e pensava: “Como essas igrejas, tão diferentes em sua decoração, nas imagens nelas veneradas, nas pessoas que as frequentam, entretanto parecem uma mesma coisa! Seja a Igreja do Coração de Jesus como a do Imaculado Coração de Maria, a de Santa Cecília, em São Paulo, como a de Embaré, em Santos, em todas elas a Igreja é sempre a Igreja!”

Biiib (CC3.0)
Igreja do Imaculado Coração de Maria – São Paulo, Brasil

O que há na Santa Igreja que se afirma com tanta unidade em circunstâncias tão diversas?

As cores e as formas que alguém escolha para exprimir seus sentimentos variam de pessoa a pessoa. Cada qual se exprime por uma certa forma, e comunica uma determinada nota ao ambiente onde está. O indivíduo tem certos gestos, atitudes, modos de falar que exprimem também a mentalidade dele. Entre todos esses sintomas de sua mentalidade e a sua própria mentalidade há coerência.

Convicções, normas, virtudes

Ora, se vou tomar a Liturgia católica, todos os seus gestos exprimem uma mesma mentalidade, como se fosse o gesticular de uma mesma pessoa. Por detrás desses gestos há uma mentalidade que vive de algum modo em todos os padres. É uma mentalidade que está no padre professor alemão do Colégio São Luís, mas também no missionário italiano do Coração de Jesus, no missionário espanhol do Coração de Maria, naquele outro sacerdote brasileiro nortista, gaúcho ou paulista. Há dentro deles a presença de um terceiro que vale mais do que eles.

Conheço, privadamente, alguns deles. São respeitáveis, distintos, apresentáveis, eu os estimo. Mas não valem o que fazem no altar. Essa tal pessoa que, por assim dizer, habita neles vale muito mais do que eles. E não foi composta por eles; já existia na Igreja antes deles nascerem e, quando foram ordenados padres, eles se inseriram nisso. O que é isso?

Vinha-me ao espírito essa pergunta, sem perplexidade. Era a indagação de quem sabia haver resposta e a procurava com a clareza de quem busca um tesouro. Não era, portanto, uma pergunta angustiada, mas sim enlevada, esperançada e maravilhada.

Eu não possuía os conhecimentos de Catecismo e de Religião que adquiri com o curso do tempo. A minha resposta foi a seguinte: a Igreja é uma instituição. É algo que existe desde Jesus Cristo até hoje e que transmite um conjunto de convicções – as verdades da Fé –, um conjunto de normas – as normas da Moral –, um conjunto de virtudes, porque a Igreja não é apenas um complexo de livros, mas é um conjunto de virtudes efetivamente praticadas, as quais vêm se transmitindo de geração em geração e são a efetivação, na vida humana, daquilo que a Fé propõe, a Moral indica, e vão assim modelando os homens em todos os lugares, em todos os tempos. Daí o admirável da Igreja.

Oh, que instituição divina!

Essa instituição dominada pela mesma mentalidade, pelo mesmo espírito, elaborou tudo isso e o foi completando e aperfeiçoando ao longo dos séculos. Mas existe algo que nasceu dela também: a boa educação na ordem temporal e civil.

Arquivo Revista
Plinio em Águas da Prata

O cerimonial da sociedade civil, bem analisado, é o contrário da chulice moderna, do espírito revolucionário. É o reflexo, nos hábitos humanos, da mesma mentalidade da Igreja.

Oh, que instituição divina! Há aí qualquer coisa completamente superior à crônica e inevitável estupidez humana. Se nela deixassem só homens, essa instituição se esfarelava. Há nela um princípio de unidade, uma chama sobrenatural que vale mais e mantém tudo isso. É um espírito, uma continuidade, uma chama de Deus.

Eu olhava as imagens de Nosso Senhor Jesus Cristo, longa e atentamente, e pensava: “Se tivesse talento, considerando a Igreja, talvez eu fosse capaz de imaginar a fisionomia do seu Fundador. Porque a Igreja está presente no seu Fundador como em sua própria Causa. Ora, olho a fisionomia de Nosso Senhor Jesus Cristo e digo: ‘É o Fundador da Igreja! Ele é a Causa, a Igreja é a Filha d’Ele!’” Donde uma longa atenção posta em Nosso Senhor para adorá-Lo como a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada, mas também para fazer a comparação entre Ele e a Igreja.

Minha conclusão: Como se parecem! A filha, como se assemelha com o Pai! Depois, considerar as regras de educação, dignidade, distinção, em vigor ainda no Ocidente, e dizer: “Esta ordem temporal também é filha de Nosso Senhor Jesus Cristo.” E eu adorava a Nosso Senhor Jesus Cristo refletido também no cerimonial civil. E exclamava: “Que maravilha! Que coisa sublime!”

Homem bom é aquele que abriu sua alma à Igreja

Posteriormente, conhecendo um pouco mais a Doutrina Católica, aprendi que a Igreja é o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo. Que Nosso Senhor Jesus Cristo tem duas naturezas, humana e divina, numa só Pessoa. E enquanto Homem-Deus pôde oferecer um sacrifício que expiasse, diante do Padre Eterno, pelos pecados dos homens, obtendo com isso o perdão do pecado original, das outras faltas pelos Sacramentos, e a abertura do caminho rumo ao Céu. E que daí vem a vida da graça sobre os homens. Essa graça é a participação da própria vida de Deus em nós.

Samuel M.
Altar com o Santíssimo Sacramento – Igreja de Santa Cecília, São Paulo, Brasil

De onde a existência, na Igreja, de uma presença sobrenatural, que eu julgava entrever mais ou menos como o Sol através do vitral. A comparação é objetável; toda comparação tem alguma coisa de claudicante. Mas o fato concreto é que a mim me parecia ver reluzimentos na Igreja através dos quais, pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, discernia algo que, em última análise, remontava a Ele. Brotava, então, de minha alma o ato de adoração a Deus, Nosso Senhor.

Em certo momento, comecei a dar-me conta de como, apesar de Ele ser infinitamente bom e misericordioso, o ser humano não é digno de se aproximar d’Ele. Essa ideia se cravou muito mais no meu espírito à medida que fui tomando contato com a Revolução. Os que não são péssimos, vejo que não o são porque abriram algo de sua alma à Igreja. Querem a definição de homem bom? É aquele que abriu sua alma à Igreja. A graça de Deus, penetrando nele, chamou-o para o bem, ele disse “sim” e começou a ser bom.

Fui vendo o mal efervescer nas pessoas, os defeitos, as más tendências. Eu examinava qual era o lado que no interior delas resistia: a Santa Igreja.

Olhava para dentro de mim e via nascer a tentação. Não só a tentação vinda do demônio, mas a procedente de mim, errado e tendente ao mal, querendo com ênfase coisas não boas, e tendo que travar uma batalha em meu interior para conseguir andar bem. E me perguntava: “Quantos são os que, ao meu redor, lutaram como eu combato? Ora, não sou nem melhor nem pior do que eles. Se preciso lutar assim para andar bem, se eles não combatem não prestam. Porque se eu não lutasse, não prestaria também. Logo, Plinio, seja desconfiado e compreenda em que humanidade você está!”

Conclusão: só é bom quem é verdadeiramente católico e traz na sua alma e na sua fisionomia o sinal da luta. Quem não é assim, quando tem virtude esta é frágil; e virtude frágil não é senão uma virtude em agonia.

Deus detesta o pecado

Aquele que não vigia a si próprio, vivendo com uma cara despreocupada, e que recusa tais pontos da Doutrina ou da Moral católica, como vou acreditar, por exemplo, na amizade dele por mim? Não contem comigo para isso, porque não é sério. Posso tomar ares amáveis, não manifestar a minha desconfiança. É uma obrigação velar a desconfiança, não se pode viver com a interrogação pendurada nos olhos. Deve-se ser amável, gentil. Mas, no fundo, se eu tenho que desconfiar de mim, e não valho mais nem menos do que ninguém, por minha natureza, então desconfio do outro que não vive tendo nas mãos as rédeas de sua alma.

Estou com setenta e cinco anos. Quanta gente tem passado pelo caminho de minha vida! Nunca vi um desmentido a essa regra: não confiar em quem não for católico apostólico romano, praticante e militante, sobretudo dentro de si. Militante com os outros, ótimo! Mas eu quero saber se você fica indignado com os seus defeitos, se os combate; porque meter o relho nos outros quando necessário é bom, mas muito menos duro do que metê-lo nas próprias costas. Formar a ideia de que os outros não prestam corresponde à realidade. Contudo, muito mais meritório é compreender que nós mesmos não prestamos.

Mas, ao mesmo tempo em que eu vinha notando isso, com a graça de Nossa Senhora, ia percebendo que Deus detestava o pecado. Nosso Senhor Jesus Cristo era profundamente incompatível com o pecado; e com o pecado em mim também. E que o amor que Ele me tem é, debaixo de um certo ponto de vista, incondicional, e, de outro ponto de vista, condicional.

Arquivo Revista

Incondicional nesse sentido: Nosso Senhor me chama junto a Ele e me ama em todos os dias que me concede viver. Ainda que tenha a desgraça culposa de O ofender gravemente, Ele me chama: “Plinio, vem cá!” Na Igreja de Santa Cecília, em São Paulo, acima de um altar com o Santíssimo Sacramento, há uma frase tirada do Evangelho muito bonita: Magister adest et vocat te – O Mestre está aqui e te chama. Mas Jesus me chama para que eu me modifique. Se não me modificar, vou caminhando não na graça d’Ele e, em certo momento, Ele me joga no Inferno! Nosso Senhor me dará a graça até o último instante. Se eu recusar, terei a rejeição eterna d’Ele, então carregada de ódio! Pois bem, vou examinar esse ódio.

Todo mundo analisa o amor. É fácil e gaudioso examinar o amor que Ele tem para conosco. É tão gaudioso que aprendemos depressa. Agora vamos analisar esse ódio. Quão pouca gente adora o ódio d’Ele ao mal! Quão pouca gente adora a divina intransigência com que Ele tem horror aos nossos pecados, ainda que pequenos e leves!

Ora, eu adoro essa intransigência ainda quando O sinto detestando os meus defeitos. Eu O adoro dizendo: “Senhor, como sois perfeito a ponto de detestar em mim isso que é detestável! Senhor, adoro a vossa justa cólera! E não compreenderia a vossa santidade infinita se não tivesse também o matiz de vossa cólera.”

Mas, como me aproximar? Eu me enlevei muito, adorei muito, compreendi como estava próximo; num segundo lance, comecei a entender como me encontrava longe. E agora, como fazer? “Salve Rainha, Mãe de Misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve!”

Ah, agora compreendo! Há Alguém que é Mãe e Advogada, com esta missão da parte d’Ele: tocar-me, comover-me, aproximar-me d’Ele e conseguir que Ele me perdoe. Alguém que une a minha imperfeição irremediável à celeste perfeição d’Ele! “Salve Rainha, Mãe de misericórdia!” Se não fosse isso, eu desesperaria. Mas Ela é a nossa esperança.

Tradicção e modernidade

Eu passava daí para a sociedade, para o mundo. Por exemplo, as festas e outras reuniões sociais das quais participei, num mundo bastante diferente do de hoje, muito mais protocolar, mais cerimonioso, mais elevado. Entrei e percebi imediatamente o contraste de duas influências.

Uma era a influência das boas maneiras, da tradição, da distinção, da elevação, e outra era a influência da Revolução, na mesma sala, nas mesmas pessoas, nas mesmas atitudes. Então eu percebia – e poderia contar cem pequenos episódios – que tudo quanto era bom, elevado e cerimonioso provinha do passado. O que era porcaria – porque não há outro modo de dizer – provinha do presente. E quando era bem ruim mesmo, prenunciava o futuro.

Inútil dizer que essas coisas procuravam envolver cada um que estava dentro do ambiente, e que a contradição marcava de tal maneira o ambiente, que exigia de cada pessoa uma certa cota de tradicionalidade e outra cota de modernidade. Dando a cota da modernidade, se abria a alma para uma espécie de vento impetuoso que ia para a frente. Oferecendo a cota da tradição, se descerrava a alma para uma espécie de calma, de temperança – parada e já sem vida – que ia morrendo a cada dia mais…

Eu me perguntei: donde vem essa tradição e essa marcha para a frente? E a resposta foi rápida. No tempo em que os homens eram católicos, nasceram regras de educação maravilhosas; essa marcha errada, do desatino e do desvario, não existia ainda. E os homens iam, cada dia que passava, inventando novas fórmulas de polidez, de distinção. A sociedade toda brilhava em atitudes em que, cada vez mais, o amor às autoridades legitimamente constituídas, o amor ao próximo igual a nós e o amor ao inferior a nós iam se destilando, e maneiras requintadas que aperfeiçoavam o temperamento exprimiam e formavam a alma.

Guilherme Gaensly (CC 3.0)
Teatro Municipal de São Paulo no início do século XX

Houve um certo momento em que entrou um demônio nisso, e um rodopio em sentido oposto passou a se instaurar. A analogia da Liturgia para a sociedade civil, as regras da etiqueta do passado, a sociedade temporal toda marcada pela Igreja, que estava no alto da montanha, nos anos 20, tudo isso foi perecendo.

Como um castelo que está ruindo, cujas pedras vão rolando pela encosta da montanha, e algumas já afundaram na lama embaixo, assim estava a sociedade civil. A Cristandade, a família das nações cristãs que a Igreja Católica modelara, e com isso a polidez, a distinção, a elegância da sociedade cristã de outrora, tudo ia desabando.

A vida humana apresenta graus de importância desiguais

Mas nesse período ainda se notava muito a tradição. Lembro-me das grandes soirées de gala no Teatro Municipal de São Paulo.

Não sei se os mais jovens alcançam o significado da palavra “gala”. O que é um espetáculo, uma cerimônia de gala?

Por detrás da noção de gala e de pompa existe o seguinte princípio: a vida humana apresenta graus de importância desiguais. E até nisso o mundo daquele tempo não era igualitário. Um ato praticado por uma razão tem um certo significado e uma certa importância. O mesmo ato realizado por outro motivo possui uma importância menor. Então, numa família onde há, por exemplo, uma matriarca, vamos dizer que é uma senhora que teve quinze filhos, e cada filho quinze filhos, e ela festeja – vou imaginar uma hipótese que muito raramente se verifica, mas pode acontecer e tem acontecido – cem anos de idade, o aniversário dela, se a família possui posses, deve ser muito festivo. É claro! Porque cem anos é um aniversário insigne!

E nesse aniversário o que há de insigne na condição de matriarca brilha mais. Então, a festa deve ter pompa! A família põe para a refeição as melhores toalhas, os melhores serviços de mesa, os melhores talheres. A casa está adornada com as mais belas flores. Servem as comidas, as bebidas, as melhores que podem apresentar.

Correlatamente, as pessoas se apresentam com os trajes melhores. E se tratam nesse dia com uma distinção e um mútuo respeito maiores do que nos dias comuns. É um aniversário de gala, comemorado com uma pompa jubilosa!

Se a família é católica, essa pompa começa de manhã, na igreja, com uma Missa solene, à qual todos se apresentam com trajes de festa, em que a família toda comunga, e a matriarca é cercada com provas de respeito especiais. Para ela se mandou fazer, nesta ocasião, um vestido excelente. Será um dos vestidos mais ricos de sua vida com o qual, provavelmente, ela será enterrada.

Mas ela se apresenta naquele dia adornada com todo o esplendor de sua condição. Todos a tratam com respeito muito mais marcado. Ela mostra muito mais a sua grandeza! É uma coisa bela, a gala! Não é sem graça como quem festejasse, por exemplo, o septuagésimo oitavo aniversário. A vida não precisa ter umas ocasiões assim?

Arquivo Revista

Bodas de prata ou de ouro de um casal, vinte e cinco ou cinquenta anos de casados. Gala, é claro! Nas ordens religiosas mais simples, como na franciscana, quando um religioso completava vinte e cinco anos – ou cinquenta, não me lembro bem – de profissão, ao menos na província brasileira e na alemã, se comemorava. Eu conheci frades alemães no Brasil que festejavam isso, ainda quando era um simples irmão leigo: Missa de gala, com pompa litúrgica. E se não me engano, já durante a Missa, ele era cercado com uma coroa de flores, a qual ele usava o dia inteiro dentro do convento! Eu acho uma beleza!

Conheço o caso de uma família antiga na qual, remexendo velhos objetos, se encontrou o vestido de casamento, finíssimo e muito bonito, da avó já falecida. Ajustava-se tanto ao corpo da neta a qual estava noiva que, pondo-o ao sol, arranjando alguma coisinha, ela se casou com o vestido da avó. Isso conferiu a toda a cerimônia nupcial uma pompa especial! É natural. São coisas bonitas, razoáveis, verdadeiras.

Espetáculo de gala no Teatro Municipal

Havia também espetáculo de gala, quando vinha uma grande companhia artística representar no Teatro Municipal. Artistas de fama mundial vinham à São Paulinho do café, para se apresentarem. Por exemplo, as melhores artistas da Opéra de Paris, cuja língua se compreendia melhor aqui.

Ou então, no campo da música, pianistas, violinistas, orquestras célebres. Eram espetáculos de gala. Resultado: todos os bilhetes de entrada eram vendidos muito mais caros. E obrigatório o uso de traje solene. Os homens com casacas, condecorações. As senhoras – no início dos anos 20 – trajando vestidos com cauda, usando leques, com plumas, joias coruscantes, etc. E era bonito estar dentro do saguão, vendo chegar as famílias.

Os automóveis entravam naquelas arcadas laterais, o chauffeur descia, abria a porta, tirava o boné, o marido ia correndo, dava a volta no carro, ajudava a mulher a descer. Ela o fazia com ar amável, entrava, encontrava conhecidos parados ali, todos vestidos solenemente, que se cumprimentavam. Muito esplendor. Entrando na sala, as frisas, os camarotes, todos dourados, aveludados, iam se enchendo de pessoas que se sentavam.

A família não cabia inteira numa frisa, nem ficava bem um rapaz ocupar uma frisa. Então, os mais novos sentavam-se na plateia. Mas como eram parentes dos outros assistentes, antes de começar o espetáculo se cumprimentavam à distância. As senhoras punham binóculos lindos, preciosos, para reconhecer melhor. Era a pompa, a gala. Isso acabou completamente. Mas de tal maneira que estou contando isso como se fosse uma história anterior ao dilúvio!

Como tudo mudou, e mudou para pior! Foi o mundo da Revolução que entrou. O neopaganismo foi eliminando completamente os restos de polidez da Cristandade, os quais eram filhos da Igreja e da Liturgia. A tradição foi morrendo e a modernidade foi pisando em tudo, como se uma horda de vândalos entrasse por toda parte. Fala-se da invasão dos bárbaros que escangalharam com o Império Romano do Ocidente. Foi triste. Porém, a entrada da Revolução escangalhou mais do que a invasão dos bárbaros.

(Extraído de conferência de 7/1/1984)