Em casa dos Ribeiro dos Santos tudo era harmônico, lógico e proporcionado. Esse equilíbrio, que se espelhava com mais intensidade no modo de ser e de ver a vida, estava presente também nas finanças da família.

Dona Lucilia dirá, no futuro, que os seus nunca procuraram a riqueza com sofreguidão, embora fossem abastados, dispusessem de conforto e de um teor de existência que, além de distinto, chegava quase ao luxo.

De modo geral, a vida no Brasil daqueles tempos transcorria em meio a uma economia estável. Daí serem as fortunas particulares muito seguras, resultantes especialmente da aplicação em imóveis, regra à qual não faziam exceção os Ribeiro dos Santos.

Recebendo o “Seu” Lago

Uma criada bate à porta da sala na qual Dª Gabriela, sentada numa cadeira de balanço, termina seu crochet.

— O que é? — pergunta.

Seu Lago já está aqui — responde a criada.

— Conduza-o ao escritório, e diga-lhe que espere, não demoro em atendê-lo.

Incumbia a Seu Lago o despretensioso serviço de todos os meses percorrer algumas casas pertencentes aos Ribeiro dos Santos, em São Paulo, receber o dinheiro do aluguel e depositá-lo num banco. Para encontrar-se com Dª Gabriela, a quem devia entregar o comprovante bancário, preparava-se com esmero: vestia o melhor traje domingueiro, camisa impecavelmente branca, de peito duro, sapatos bem engraxados.

Já faz 15 minutos que Seu Lago espera, quando Dª Gabriela, grave e cerimoniosamente, entra na sala. Respeitoso, Seu Lago se levanta e a dama estende-lhe a mão, dizendo com bondade:

Seu Lago, como vai? Vai bem? Os seus vão bem?

Tomado de grande veneração por Dª Gabriela, e encorajado pelo modo amável de ela dirigir-lhe a palavra, Seu Lago não resiste em contar a doença de algum netinho ou qualquer outra dificuldade familiar.

Quando apresenta o comprovante bancário a Dª Gabriela, esta, com distinção, põe o pince-nez e verifica os números, dizendo em seguida:

— Está muito bem. Então não há mais nada de novo?

Como velhas amigas, num calmo embalo, a senhora e a ex-escrava trocavam reminiscências

Fotos: Arquivo revista
Dona Gabriela e sua cadeira de balanço, herdada por Dona Lucilia

Quase sempre ele garante que não há novidade — ou seja, nenhum problema com inquilinos a resolver. Tranqüilizada, diz Dª Gabriela:

— Então, muito obrigada.

Seu Lago, percebendo já ser hora de se retirar, levanta-se enquanto ela o cumprimenta. Tudo se passa com afabilidade, e Seu Lago sai reconfortado pela consideração com que foi tratado.

A antiga senhora e a ex-escrava recordam os velhos tempos

Esta outra cena parece inspirada numa página da Condessa de Ségur:

Mantendo seu porte imponente, sem diminuir em nada a amabilidade de dama brasileira do século XIX, Dª Gabriela tinha o costume de receber — e isto até a ancianidade — a freqüente visita de uma antiga escrava que, em Pirassununga, servia a uma amiga sua. Convidava-a sempre para a sala de jantar, oferecendo-lhe uma cadeira de balanço, enquanto ela própria se sentava em outra. Então, num calmo embalo, conversavam longa e distendidamente sobre aqueles remotos tempos:

— Sinhara! Lembra daquela ocasião em que o Imperador e a Imperatriz foram lá, como a cidade estava em festa? E aquele povo todo que apareceu vindo das fazendas?…

— Ah! Não posso me esquecer… Foi um dia de muita alegria!

— É… E como estava tudo uma maravilha, hein Sinhara! Bom… e também, como estava linda a Sinhara com aquele vestido de seda azul. Todas as outras também estavam muito bem vestidas, com tanto luxo, que dava gosto ver… Meu Sinhô tinha me mandado levar um recado ao Dr. Antônio. — A velha negra pára um instante, os olhos sonhadores, antes de continuar. — E Sinhazinha Lucilia, tão pequenininha, foi com Sinhara visitar a Imperatriz no vagão… Como foi mesmo que ela falou à menina?

— Bem, Sua Majestade…

E assim ia o diálogo, com um tom de voz apenas audível a quem passasse por perto — a ex-escrava com respeito e confiança, a dama com grandeza e bondade, tudo sob um olhar fortuito, discreto e admirativo da jovem Lucilia.

Fotos: Arquivo revista
A poesia composta por Dr. Antônio, com louvores às virtudes de sua querida filha Lucilia
Fotos: Arquivo revista
A jovem Lucilia aos 16 anos

Virtudes que eram como “belas flores, viçosas”

Assim, muito estáveis e sempre exímios na arte do convívio, os Ribeiro dos Santos faziam questão de manter um relacionamento cerimonioso, mesmo na intimidade do lar. Bondade e respeito, cortesia e gravidade, dignidade em todo caso, predicados admiráveis que na alma de Lucilia apareciam coroados pelo ouro da virtude!

Disso temos eco na pequena poesia, composta por Dr. Antônio, por ocasião de um aniversário de sua querida filha, para ser recitada por uma irmã dela:

O que poderei dizer-te
Que te exprima a gratidão
Pela bondade sem conta
De teu santo coração?

Nada posso, mas meus olhos
Não ocultam a alegria
Que sinto n’alma inocente
Neste tão faustoso dia.

Esta alegria, bem a vês,
É filha da gratidão,
Pois sinto quanto te deve
Meu infantil coração.

Tanto amor, tanta bondade
Com que me hás sempre tratado
São belas flores, viçosas,
Que em meu peito tens plantado.

São flores, mas flores d’alma
Eternas, como ela o é.
Incenso que arderá sempre
Como perfume da Fé.

Sente, pois, o que digo
Como a fiel expressão
Do que por ti tenho n’alma
De amizade e gratidão.

Atravessando a barreira dos tempos, testemunham esses versos o caráter afetivo e benevolente de Lucilia.

Com o correr dos anos, essas virtudes de tal maneira se acrisolaram que, na perspectiva de fazer o bem, estava disposta a sacrificar até mesmo conveniências pessoais.

Bondade que nada podia abalar

Certa feita, ao se ver numa situa­ção difícil, uma senhora abastada não encontrou melhor saída do que escrever a Dr. Antônio, queixando-se de estar adoentada e não ter quem dela tratasse. Por ser boa amiga e cliente, ele a convidou, de comum acordo com Dª Gabriela, a se hospedar uns tempos em sua casa, onde suas filhas velariam por ela.

Transbordante de afeto, Lucilia prontamente se desdobrou no atendimento à enferma, cujo mal exigia esmerados cuidados.

Uma pessoa de casa, notando não estar a doente à altura da dedicação de que era objeto, afirmou depois de alguns dias:

— Lucilia, não seja boba em se aplicar tanto no tratamento dessa senhora. Quer saber o que vai acontecer? Quando ela ficar boa e estiver para ir embora, não lhe agradecerá; talvez lhe diga um simples “muito obrigada”, e logo se esquecerá de você… Mas, àquela outra que só passa alguns instantes com ela para lhe contar alguma historieta engraçada, é que ficará agradecida!…

Lucilia, com serenidade, respondeu:

— Bem, mas estou fazendo isso porque papai quer, e por amor de Deus. A obra de misericórdia fica cumprida.

A hóspede acabou sarando e, antes de partir, à hora das despedidas, disse secamente à sua benfeitora:

— Lucilia, até logo, obrigada.

Para a outra, cálidas efusões:

— Fico-lhe muito agradecida! Você foi um anjo para mim, divertiu-me, contou-me tantas coisas engraçadas, animou meu espírito!

Tendo-se retirado a ingrata, a que fora cumulada de louvores lembrou:

— Viu? Não lhe disseram? Deixe de se dedicar assim a quem é ruim, porque você só receberá pedradas.

— Mas o bem fica feito — redargüiu tranqüila Lucilia.

Foi com essa mesma disposição de aliviar o sofrimento alheio que a bondade sem conta de seu santo coração haveria de consolar, noutras ocasiões, o próximo que desta solicitude tanto necessitava.

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João Clá Dias)