Dona Lucilia em 1912

Inúmeras devem ter sido as circunstâncias nas quais a maternalidade de Dª Lucilia pôde manifestar-se através do carinho insondável, envolvente e nunca desmentido com que acolhia a todos os que eram atingidos por alguma tragédia, ou por alguma necessidade, mínima que fosse.

Bondade fora do comum

Exemplo disso era o modo como ela tratava sua irmã Zili. Desde o primeiro instante em que esta viu a luz do dia, Dª Lucilia, 13 anos mais velha, passou a desempenhar junto a ela o papel de mãe, envolvendo-a em seu inesgotável afeto. Dona Zili conservou por toda a vida, em relação a Dª Lucilia, um devotamento e gratidão quase filiais.

Semelhante ventura coubera à filha de Dª Zili, Ilka, a qual, morando também no palacete Ribeiro dos Santos e tendo quase a mesma idade de seus primos, era educada com eles como se fosse sua irmã.

Transcorridas várias décadas daqueles saudosos tempos, Dª Ilka continuava a guardar gratas recordações de sua tia:

“Tia Lucilia era uma autêntica lady, pessoa de um espírito superior, mas de uma bondade fora do comum. Às vezes se pode ser levado a achar que quem é bom não deve contrariar os outros ou não é capaz de ver onde está o mal. Tia Lucilia, não! Quando ela se zangava com o Plinio por ele ter feito alguma travessura, quantas vezes eu a vi pegar uma escova de prata e lhe bater na mão. Porém, ao mesmo tempo possuía uma bondade rara, era boníssima!

“Tia Lucilia era uma santa. Sofreu muito na vida, mas sabia suportar tudo com paciência. Era realmente uma pessoa extraordinária. Foi ela quem criou minha mãe. Quando mamãe nasceu, tia Lucilia tinha treze anos, e foi praticamente ela quem a educou. A mãe de mamãe foi na realidade tia Lucilia.

“Mamãe tinha loucura por ela! Loucura! Acho que mamãe tinha muito mais afinidade com a irmã do que com a própria mãe.”

A tia predileta

Entre os sobrinhos, Dª Lucilia era considerada a tia predileta. Eram ávidos de estar com ela para ouvir suas histórias ou para as comemorações do Natal, da Páscoa e de outros festejos em família.

O convívio harmônico, agradável e respeitoso constituía para ela a própria perfeição da vida social, verdadeira dádiva de Deus a suavizar as agruras do peregrinar do homem por esta terra de exílio.

Era sempre firme e definida no exercício de sua autoridade, que, entretanto, se apresentava invariavelmente envolta numa atmosfera de bondade. Se possível, sua decisão se aplicaria de imediato para a solução de qualquer problema em que lhe fosse imperioso mandar; nunca, porém, perdeu ou sequer diminuiu sua convicção de que pela bondade demoveria os obstáculos e tornaria flexível a rigidez do amor próprio em incontáveis almas com que lhe era dado tratar.

Fotos: Arquivo revista
Fotos: Arquivo revista

Senso do maravilhoso e benquerença

A benquerença de Dª Lucilia se conjugava com seu senso do maravilhoso, que se iluminava até em relação às belezas da natureza, pois constituem estas autênticos reflexos de Deus para qualquer observador verdadeiramente católico1. Era assim que Dª Lucilia via, por exemplo, espelhar-se a majestade de Deus, aliada à bondade, no espetáculo natural oferecido pelo trajeto da estrada de ferro São Paulo—Santos.

Fotos: Arquivo revista

Fotos: Arquivo revista
Figura serena, afável e compassiva, aliando uma extrema bondade a um requintado senso do maravilhoso…
Dona Lucilia em 1912; na página 8: em cima e embaixo à esquerda, Dona Zili; à direita, sua filha Ilka

Quando o trem começava a descer a Serra do Mar, diversas vezes ela se punha de pé junto à janela e, em silêncio, contemplava extasiada aquele panorama, no qual sobressaíam os manacás floridos. Seu olhar se fixava, sobretudo, nos pontos mais altos das montanhas, onde rochas monumentais desafiavam os céus e as nuvens, e de onde partiam fios d’água prateados que se desdobravam numa espécie de cortinado luminoso a correr sobre a escura pedra, até se lançar espumante no tanque rochoso cavado pela própria queda. Quanto mais alta era a nascente, tanto maior era a pureza da água e a energia com que embaixo ela se chocava e se misturava com as outras águas.

Aquele cenário bem se assemelhava à alma de Dª Lucilia, que do alto de seu amor a Deus sentia-se convidada a se debruçar para atender às carências de um inferior.

Quando Dª Lucilia contemplava o panorama da serra, transparecia — seja em seu olhar, seja na seriedade de sua fisionomia, ou até no entusiasmo que manifestava — aquela inconfundível doçura que partia de elevadas considerações. Não eram pensamentos de pura filosofia, mas de grande repercussão afetiva a respeito da obra de Deus, do grandioso da paisagem que se lhe descortinava diante dos olhos. Cogitações como estas povoavam seu rico interior.

E precisamente porque sua alma habitava aquele píncaro, quando chegava a hora de inclinar-se para tratar, por exemplo, de um filho, tanto mais aquela doçura se fazia sentir. Era isto o que de modo especial atraía no convívio com ela: um misto de elevação que sabe voltar-se com ternura para o inferior, e com veneração e respeito para o que lhe é superior. Possuía ela, em grau excelente, uma forma de presença que irradiava essa sua ordenação de espírito.

“Dona de si mesma…”

A figura de Dª Lucilia, serena, afável, compassiva, mas intransigente no cumprimento do dever, piedosa e penetrada de virtudes, nos faz recordar um luminoso comentário do Pe. Royo Marín, O.P., que sob tantos aspectos parece descrever-lhe os traços morais:

Já entrastes em um desses lares benditos, no qual impera uma rainha serena?

Eternamente calma em suas forças, perpetuamente graciosa e sorridente no resplendor de sua alta virtude, a rainha da serenidade não é perturbada nem pelas importunidades de seus filhos, nem pelos acidentes de sua saúde ou as preocupações da casa, nem pelas vicissitudes incessantemente móveis da existência.

O dever é sua estrela. Avança como os reis antigos, porque sabe, como eles, que Deus é o motor: Deus, sobre quem ela se apóia; Deus, que nunca lhe faltou; Deus, que tem em suas mãos paternais todos os acontecimentos de sua vida de mãe e esposa, de dona-de-casa e de mulher de trabalho.

Seu lar é o reino da paz, quase do silêncio. Se as vozes se levantam, é para misturar-se umas às outras em notas de um concerto de alegria.

Tudo nessa família funciona com a regularidade do grande pêndulo do relógio da escada, onde o “tac” responde ao “tic” com regularidade e cuja oscilação não é mais precipitada à noite do que de manhã.

O segredo da rainha da serenidade? Ah! quisereis conhecê-lo? Por que é tão diferente de tantas outras esta mãe, esta dona-de-casa?

Porque ela é… dona de si mesma2.

(Transcrito da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

1) Rom 1, 20: “Com efeito, as perfeições invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua divindade se tornaram, desde a criação do mundo, visíveis à inteligência do homem por meio das criaturas”.

2 ) Fr. Antonio Royo Marín, O.P., Espiritualidad de los seglares, BAC, Madrid, 1967, p. 612 e 613.