Comentando um pequeno e pitoresco fato extraído do livro “Ce qu’était un Roi de France”, da autoria de Funk-Brentano, Dr. Plinio nos transmite valiosos ensinamentos.

Um bailio de Filipe Augusto, rei de França, cobiçava a terra deixada por um cavaleiro morto. Em presença de dois carregadores pagos por ele, fez uma noite com que o morto fosse desenterrado; perguntou se queria vender a sua terra e propôs-lhe um preço. O defunto nem se mexeu. “Quem cala consente”, declarou o comprador.

Algumas moedas foram postas em suas mãos, após o que, foi recolocado em seu caixão.

Com grande espanto por ver seus domínios usurpados, a viúva se dirigiu ao Rei. O bailio compareceu, então, ladeado por suas duas testemunhas, as quais atestaram a realidade da venda.

Filipe Augusto percebeu tratar-se de uma trapaça, e levou para um canto do salão um dos carregadores, e lhe disse em voz baixa: “Recita-me, no ouvido, o Padre-nosso.” Depois exclamou em alta voz: “Muito bem.”

O segundo carregador, convencido de que seu companheiro denunciara a tramóia, apressou-se em dizer o que sabia e o bailio foi condenado.

Neste fato encontramos vários aspectos: os resquícios da honestidade que havia no ladrão medieval; a viúva indignada que encontra no rei o seu apoio; a figura grandiosa de um rei que nos traz uma noção nova do poder judiciário.

De cada um deles podemos tirar diversos ensinamentos.

A função judiciária dos reis na Idade Média

Havia na Idade Média uma concepção do poder real, que considerava como principal função do rei a judiciária.

Esta função quase não é mais exercida pelos chefes de estado em nossos dias; dela apenas conservam a faculdade de indultar os presos. Nos dias atuais, toda a matéria judiciária passou às mãos de especialistas e técnicos, os quais compõem o poder judiciário.

Porém, na Idade Média havia uma noção de liberdade e do poder régio profundamente diferente da hodierna. O medieval possuía a ideia de que não era a promoção da economia a mais alta finalidade do Estado, mas sim a manutenção da justiça. E, portanto, o supremo titular do poder público deveria ser ao mesmo tempo o supremo juiz.

Na concepção medieval do poder judiciário o rei era chamado tanto a manter o justo equilíbrio entre os vários órgãos que compunham a sociedade, feudos, conventos, corporações, universidades, bem como a julgar casos individuais. Por isso, nessa historieta, Filipe Augusto — um dos mais poderosos reis de França medieval, grande guerreiro, vencedor da famosa batalha de Bouvines — aparece mantendo o equilíbrio e a harmonia do Estado e da sociedade em nível judiciário, de um lado, e de outro, julgando até mesmo os casos particulares.

Protetor dos mais fracos

Para algumas pessoas, este fato pode parecer perplexitante, pois, como pode um tão grande rei usar de um subterfúgio mais próprio a um simples delegado de polícia para obter que alguém confesse um crime? Mais, alguém poderia indagar: “Por que um caso como esse foi parar nas mãos do rei? Não havia juízes na Idade Média?” A resposta para tais questões evoca outra linda concepção medieval: o poder judiciário funcionava comumente, de indivíduo a indivíduo, quando se tratava de homens comuns; porém, no que tocava a viúvas e órfãos, o rei poderia ser chamado a fazer justiça, pois ele é o protetor dos mais fracos.

PHGCOM, Horace Vernet
Acima, Batalha de Bouvines. Na página da esquerda, em destaque, Felipe Augusto.

O medieval possuía a ideia de que não era a promoção da economia a mais alta finalidade do Estado, mas sim a manutenção da justiça.

Como isto é diferente da imagem do rei que fazem os revolucionários! Estes afirmam ser o rei o protetor dos nobres, em detrimento dos plebeus. Mas, o que aqui se vê é exatamente o contrário: ele de tal forma protegia os mais fracos, que uma viúva em muitos casos tinha a possibilidade de apelar diretamente para a justiça real, a qual julgava o caso de modo decisivo.

Pela história vê-se tratar da viúva de um cavaleiro, que viu as terras que seu marido falecido lhe deixara, serem usurpadas, e acaba por apelar à justiça real. O rei com esta pequena “trapaça” desmascara inteiramente a farsa.

Resquícios de honestidade

Esta narração apresenta ainda uma última nota muito curiosa. Trata-se da diferença entre a maldade na Idade Média e no mundo hodierno.

Apesar da rusticidade semibárbara do bailio de Filipe Augusto, ele não quis violar completamente a verdade, procurando por isso um sofisma barato, que de algum modo acalmasse um pouco a sua consciência e a das outras testemunhas.

Caso hoje em dia um homem quisesse apropriar-se das terras de um falecido, pagaria dois capangas, e lhes diria: “Essa terra vale tanto; vocês vão assinar um documento atestando que viram fulano me vendê-la antes de morrer. Caso o rei me venha inquerir, eu mostro o papel atestando tê-la comprado.”

No entanto, ele recorreu a um artifício diferente. Ao invés de fazer assinar um documento falso, ele preferiu realizar uma espécie de negócio falso — aliás, um negócio muito repugnante, pois esse cadáver devia presumivelmente estar em estado de decomposição —, julgando pelo silêncio do defunto que este consentia na venda. E, por fim, deixou algumas moedas dentro do caixão. De um ladrão moderno, não se poderia sequer imaginar o pagamento de algumas moedas para um morto!

(Extraído de conferência de 18/6/1973)