Palácio de Herrenchiemsee, Alemanha

Dona Lucilia era uma pessoa altamente ordenativa, cujo espírito, mesmo quando voltado para as coisas comuns da vida, estava com frequência direcionado para Deus.

Ralf Roletschek (CC3.0)
Uma pessoa que criasse tulipas e conhecesse, portanto, grande variedade dessas flores muito bonitas e fosse dotada de um espírito ordenativo, pelo melhor do seu espírito seria levada a pensar numa tulipa absoluta, lindíssima, perfeitíssima, que encerrasse em si todas as qualidades do gênero, de maneira que aquela fosse a tulipa por excelência.

Essa tulipa não existe. Pode haver uma linda, a mais bonita das tulipas que Deus criou, mas uma assim, a qual esteja para com as várias tulipas nesse grau de absoluto, não existe, porque absoluto é só Deus.

Tulipa perfeita, palácio de inexprimível beleza

Pode-se imaginar que uma pessoa procurasse fazer uma fantasia desse gênero, louvavelmente, virtuosamente, para ter uma ideia da tulipa perfeita, de um lado, mas satisfazer o seu próprio desejo de perfeição em tudo.

Assim poder-se-ia pensar numa pessoa que tratasse com vários objetos muito bonitos, todos eles a seu modo perfeitos, com as limitações próprias a este vale de lágrimas. Vamos dizer, um palácio constituindo com os seus móveis, seus parques, seus jardins, suas fontes, com tudo o mais, um conjunto de inexprimível beleza. A pessoa cogita o que seria algo de mais alto no gênero palácio, uma coisa inatingível, mas na qual o homem pode pensar e pensa com muita seriedade. De maneira que a tulipa, o palácio imaginado por ele seriam, antes de tudo, aquela forma de perfeição que reside principalmente numa seriedade admirável. Este seria o mais alto ponto de cogitação sobre coisas terrenas que um espírito humano pudesse conceber.

Daí viria uma ideia abstrata do que seria a perfeição absoluta, ideia esta que a pessoa não pode reduzir a figura, mas que fica no espírito. O anelo de conhecer essa perfeição absoluta é o desejo de conhecer a Deus, porque só Ele é essa perfeição absoluta.

Alguém cuja elevação de espírito o levasse a conduzir-se frequentemente a esse altíssimo páramo, e que mesmo quando estivesse cuidando das coisas comuns da vida ainda possuísse algo dessa cogitação dentro do espírito, seria uma pessoa altamente ordenativa, porque o princípio da ordem é esse. E ao tratar com a menor das coisas pô-la na ordem devida, é um dos efeitos desse princípio da ordem.

Bondade, doçura e seriedade

O que se assistia em mamãe – não sei em que grau definido, mas num grau muito alto – era isso. Para além da bondade, do afeto dela, via-se que estava uma cogitação posta com muita doçura, mas sobretudo com muita seriedade, neste absoluto das coisas, ou seja, Deus Nosso Senhor.

Arquivo Revista

Nas fotografias melhores de Dona Lucilia, sobretudo, isso ressalta muito. Por exemplo, naquela em que está sentada num banco de madeira pintado de branco. Ela veste um traje de gala, portanto numa postura de quem está participando de uma festa e se separou um pouco para ser fotografada. Nota-se que com toda a naturalidade, terminado o ato de ser fotografada, ela sairia do local e começaria uma conversa social – não o social de hoje, bem entendido, mas o do tempo dela – com as pessoas que estivessem ali, como costuma ser nos atos sociais. Mas por cima de tudo está qualquer coisa de profundamente sério, um tanto doído e um tanto extasiado da alma dela. Isto era o melhor de sua alma.

Já em outra fotografia onde ela está no extremo da ancianidade, olhando comprazida para umas flores, o que há de ordenado é diferente daquela primeira fotografia na qual ela tem trinta e tantos anos, e naturalmente com aquele completo domínio sobre seu próprio corpo, próprio da idade mais distante da velhice.

Subiu de modo ordenado a escada da dor

Nessa segunda foto mamãe aparece com o corpo como que esmagado pela velhice, mas de tal maneira que não está esmagado em nada. Percebe-se nela a idade extrema de quase noventa e dois anos, a qual poucas pessoas atingem. Sem embargo, ela conservou a preocupação de que o geral do corpo e da cabeça dela conservasse uma linha muito definida.

Tudo quanto falei a respeito da elevação, nessa idade Dona Lucilia certamente não saberia explicitar, mas está no espírito dela e ocupa um lugar predominante na impostação geral de sua pessoa.

Nota-se isto, por exemplo, pela postura das mãos e dos braços, colocados numa posição que não é falha de alguma beleza e ordem. Os braços não estão postos de qualquer jeito como uma pessoa que perdeu o governo de si, mas têm uma certa linha própria a quem sabe estar sendo fotografada e, portanto, precisa apresentar-se de maneira decorosa.

Por outro lado, ela quis ser fotografada prestando atenção nas flores para ser amável com a pessoa que as deu – isso era muito dela –, e o modo de ser amável era olhar para as flores com uma expressão fisionômica de quem está comprazida, dando assim a entender, discretamente, que o presente agradou, e com isso contentar quem quis agradá-la.

É o que lhe era possível fazer nesse extremo de ancianidade. Mas nisso mesmo vê-se que o desejo da ordem a levou a resistir contra o defeito natural da idade, e imprimir um tonus geral na fotografia.

Arquivo Revista

Não podia alguém, olhando essa fotografia, perguntar: “Quem é essa velhota?” Não cabe essa pergunta por causa do cuidado dela com a sua própria ordenação.

Pelo que me foi dado ver, ela subiu a escada da dor normalmente, degrau por degrau, de maneira que com o curso do tempo as decepções, os sofrimentos se foram somando. Mas essa soma se constituía de degraus e em tempos iguais, de maneira que se tinha a impressão de uma ascensão homogênea.

Por outro lado, mesmo na avançada idade em que mamãe estava nessa foto, por exemplo, a acolhida que ela dava a uma pessoa que chegava era naturalmente graduada conforme as disposições dela em relação a essa pessoa, pois Dona Lucilia não era igualitária, e queria a uns mais, a outros menos. Mas sempre com uma abertura, uma bonomia, uma acolhida, que podiam ser comparadas, conforme o caso, à luz de um dia solar muito bonito ou a uma luz mais discreta, mais doce, de uma linda noite de luar. Ela tinha assim disposições de espírito em relação a essa, àquela pessoa, conforme os casos e as situações de entusiasmo ou de um afeto estável, tranquilo, envelhecido até, mas que não muda nunca. Ela era muito constante nas suas amizades.

Materno entusiasmo perante o afeto filial

Um caso que, aliás, surpreendeu-me um pouco, no qual esse entusiasmo se revelou foi no dia em que se inaugurou a Constituinte, sendo eu deputado.

Entrei no recinto da Câmara, fui até à bancada paulista disposta logo na primeira fileira e cumprimentei os meus companheiros de bancada, como era minha obrigação. Logo depois, como eu não conhecia nenhum outro deputado, todos eram novos para mim, não tinha obrigação de cumprimentar mais ninguém, comecei a olhar as arquibancadas para saber se ela tinha encontrado lugar. Porque se não tivesse eu subiria, mexia qualquer coisa, mas arranjava um lugar para ela. Pelo afeto que devotava a ela parecia-me natural que agisse assim e, portanto, não calculei o efeito do que eu fazia.

Arquivo Revista
Dr. Plinio em sua residência, em fevereiro de 1993

Por uma coincidência qualquer custei para vê-la. De repente, percebi as duas – mamãe e minha irmã – que estavam sorrindo. Cada uma tinha tirado o lenço da bolsa e estava agitando-o porque, percebendo que eu não as estava vendo, quiseram assim, com esse gesto, facilitar a pesquisa. Quando a vi fiquei muito contente e fiz um sinal com a mão, de saudação, e voltei para o meu lugar.

Terminada a sessão, a assembleia se dissolveu e fui procurá-las na saída do lugar onde elas se encontravam com meu pai, para tomar o automóvel e voltar ao hotel onde estávamos hospedados.

Tratava-se do Hotel Glória, que fica numa posição muito bonita na praia do Flamengo. Eu tinha arranjado para ela um apartamento excelente, com vista direta para o mar. Ali não há praia, pois a urbanização fez com que a terra desse diretamente num parapeito com pedras pontudas. Coloquei-a naquele apartamento porque sei que ela gostava muito de panoramas, e ali o panorama é muito bonito.

Quando cheguei, encontrei-a sentada numa espécie de cadeira de balanço, olhando para o mar que, de fato, estava soberbo naquela noite. A Lua literalmente dourada e muito bonita. Depois, a uma pequena distância, plantada numa posição por assim dizer muito fotográfica, uma palmeira alta. No Rio há palmeiras muito bonitas, altas, grandes. Dona Lucilia estava fruindo o reflexo da Lua dourada no mar e toda a beleza do panorama.

Entrei, acerquei-me dela, beijei-a, enfim, uma coisa costumeira. A cadeira de balanço era muito baixa, de maneira que me ajoelhei para ficar assim ao alcance dela e dizer-lhe qualquer coisa, essas conversas comuns.

Ela me disse:

– Meu filho, você não sabe que alegria você deu à sua mãe hoje.

– Mas como assim, meu bem?

– É das maiores alegrias que você me tenha dado na vida!

Mas aí ela falava com ênfase. Eu perguntei:

– Mas por que isso?

– Eu ainda conservo na retina a sua expressão fisionômica na Câmara, lá embaixo, procurando-me e depois me dizendo adeus; a expressão de fisionomia alegre e tranquilizada que você tomou quando viu que eu tinha encontrado um lugar.

Eu não estava angustiado, nem dava para isso, mas atento; queria que ela estivesse à vontade.

Ao ouvir isso “caí das nuvens” e disse:

– Mas, meu bem, isso não tem nada de mais.

– Não é verdade – respondeu ela –, naquela hora em que você podia estar pensando só em si e todo cheio de vaidade, pensou assim em sua mãe; quer dizer muito. E até agora estou cheia da alegria de ter recebido de sua parte essa manifestação de afeto filial.

Osculei-a várias vezes, brinquei um pouquinho com ela e saí.

Eu não a vi em nenhum momento representar tanto entusiasmo por alguma atitude minha do que nessa ocasião.

(Extraído de conferência de 26/2/1993)