Dom João VI - Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro

Mostrando que as mudanças de formas de governo ocasionam transformações nas ideias e nos costumes, e vice-versa, Dr. Plinio descreve de modo vivaz e atraente fatos da História do Brasil, ocorridos na época de Dom João VI.

Em matéria de História existem os grandes quadros históricos como, por exemplo, no Brasil, o período da República Velha que vai desde a proclamação da República, pelo Marechal Deodoro da Fonseca, em 15 de novembro de 1889, até a queda de Washington Luís, em outubro de 1930. Foi um tipo de organização política, econômica e social vigente naquele tempo. A isso correspondem costumes: modos de vestir, de falar, de agir, de pentear, de discursar; inclusive toda uma vida interna do país e até das famílias.

Alfredo Rigaud (CC3.0)
Imperador Dom Pedro II cercado pelos principais políticos nacionais, por volta de 1875 Álbum de Retratos da Família Imperial, Museu Imperial de Petrópolis, Brasil

Inegável beleza no encontro entre diferentes épocas históricas

Quando cai um regime, é sinal de que as ideias do comum do País, ao menos da maioria mais influente, estão mudando, e com isso muda tudo.

Divulgação (CC3.0)
Napoleão Bonaparte – Museu de História da Arte, Viena, Áustria

Passado o período da Repúbica Velha, inaugurou-se uma segunda República brasileira em 1930, que foi até a queda de Getúlio Vargas, em 1945. Chamou-se República Nova e correspondeu a outro período, outro tipo de homem, outras considerações.

Após a queda do Getúlio e de uma série de convulsões, tivemos o Estado Militar que durou até há pouco. E posteriormente houve a restauração do regime civil de caráter democrático, no qual estamos.

Assim como a forma, o regime de governo decorre da mudança das ideias, estas preparam a transformação dos costumes; muitas vezes também a mudança das ideias e dos costumes faz com que seja modificado o regime governamental. Pode ser, por exemplo, que a partir de um novo gosto de música se mude toda a forma do Estado.

Se tivéssemos tempo, seria muito interessante estudar isso em aspectos da História norte-americana, ou da sul-americana, brasileira, e sobretudo da História europeia, porque põe em xeque muito mais ideias gerais do que os outros quadros históricos que temos visto.

Em outra conferência1 discorri sobre o tempo de Dom João VI, atendo-me quase exclusivamente à vida privada dele. Não falei de sua vida pública porque pretendia narrar pequenos episódios muitas vezes omitidos nos livros didáticos.

Somando tudo, o que vemos daquela época? Existem alguns encontros curiosos… Em matéria fluvial, uma coisa bonita é ver a confluência de dois rios. Quando as águas de ambos se encontram, sai um curso de água maior. Às vezes, acrescenta-se um terceiro afluente. É uma cena bela para se contemplar. Assim também, considerar o encontro de épocas históricas diferentes tem uma inegável beleza.

Pedro Beltrão (CC3.0)
Salão nobre do Museu dos Coches, Lisboa, Portugal

Império colonial português

Naquele tempo, ou seja, início do século XIX, o que era o Brasil, ou a Bahia – onde Dom João VI esteve de passagem –; como era o Rio de Janeiro quando o Monarca ali chegou?

Os exércitos de Napoleão estavam abalando todos os tronos da Europa. Os Estados Unidos havia pouco tempo tinham se declarado independentes. O Canadá tinha se separado dos Estados Unidos, precisamente porque queria continuar fiel à coroa inglesa. Os súditos da Inglaterra na América do Norte, que não queriam separar-se do Reino Unido, passaram para o Canadá. Por isso esta nação tem até hoje uma certa vinculação política com a Inglaterra. Pelo contrário, os norte-americanos constituíram a primeira república do mundo contemporâneo. Pequenos Estados republicanos houve durante a Idade Média. Mas a primeira grande república, antes mesmo da francesa, foi a norte-americana.

Pouco depois de Dom João VI ter chegado ao Brasil, começam as agitações para a independência dos países sul-americanos, inclusive do México, da América Central. Dentro de algumas décadas, toda a América do Sul se tornou republicana, tendo as colônias espanholas se dividido, constituindo repúblicas fracionadas com nações independentes umas das outras. Enquanto a América lusa, isto é o Brasil, fez o contrário: conservou a monarquia e a unidade, constituindo até hoje um bloco único de língua portuguesa.

O império colonial português era colossal. Abrangia o Brasil, regiões da África – notadamente os Estados que vieram a chamar-se depois Angola e Moçambique –, muitos pontos da Ásia, como as cidades de Goa, Damão e Diu; na Oceania, a ilha de Timor; onde se constituía um território metropolitano à maneira de um fragmento da Europa, com relações culturais, políticas e diplomáticas constantes com as outras nações do Velho Continente, enfim, a vida comum de uma nação europeia, com muitos contatos com a Santa Sé e uma corte organizada com toda a pompa das cortes europeias do tempo do absolutismo.

Nunca na História do mundo houve um tal conjunto de cortes requintadas e pomposas como na Europa daquele tempo. Pode-se dizer que a corte chinesa, a japonesa e uma ou outra corte oriental excederam em luxo; mas luxo é uma coisa, requinte de educação, de distinção e de maneiras é outra.

O caminhar da História

Portugal, por sua cultura própria, seus intelectuais e homens de Estado, mas também pelo muito que recebia do convívio com outras nações europeias, era altamente civilizado. Sua corte, esplendorosa. Por exemplo, não creio que haja na Europa uma coleção de coches reais mais completa, bonita e faustosa do que a de Lisboa. Aqueles coches dos quais um me interessou tão vertiginosamente em Versailles, quando eu era pequeno: dourados, com janelas de cristal e revestimentos internos de seda, damasco ou veludos extraordinários.

Guilherme Gaensly (CC3.0)
Avenida Paulista, São Paulo, Brasil, em 1902

Nesse quadro em que a América começava a nascer em meio às nações civilizadas, tomado como um todo, o Brasil era um misto de basicamente três elementos distintos.

Vinham para o País os portugueses e os negros oriundos da África, porque não havia imigração de outros lugares. Contribuíam também para formar a população brasileira os índios. Mas estes e os negros levaram gerações até se civilizarem. Não se civiliza assim: põe no grupo escolar, aprende a ler e o sujeito sai civilizado… A Europa levou séculos para ser civilizada pela Igreja. O Brasil e a América do Sul haveriam de levar muito tempo para isso também.

Então, o Brasil possuía cidades de pouca população, grande parte da qual se encontrava num estado entre civilizado e selvagem; depois vinha morar aqui um ou outro fidalgo com vontade de fazer carreira.

Nessa população de muito baixo grau, as moradias eram muito primitivas. Quem era filho de índio vivia em habitações não muito diferentes das choças, pois a pessoa tende a ter saudades de uma casa que seja semelhante à dos pais e dos avós.

No tempo em que na Avenida Paulista havia casas muito ricas e palacetes de grande luxo, conheci o caso de uma senhora de ascendência síria, cujo filho fez, de repente, uma fortuna foguete. E construiu naquela avenida uma casa enorme. Ele era casado, levou toda a família e teve o bom gosto de levar a mãe também. Esta era uma senhora que morava na Rua 25 de Março. Um dia ela disse ao filho:

– Olha, não me estou sentindo bem aqui; estou com saudades da Rua 25 de Março.

– Mas mamãe, aqui a senhora tem uma casa tão boa!

– Entretanto não tem sequer um tanque para eu lavar roupa!

Então, num terraço da casa, ele mandou fazer um tanque de lavar roupa, de mármore, para a mãe. De manhã bem cedinho, essa boa senhora era vista lavando roupa. Eu não caçoo disso. Parece-me compreensível. As transições são assim. É até uma coisa autêntica; ela não representava o que não era. Acho que as etapas da História são assim.

Alvesgaspar (CC3.0)
Universidade de Coimbra, Portugal

O negro e o índio não iam querer morar naquelas “vilas Moscou”, “vilas misérias” que há por aí. Eles queriam uma coisa meio choça, meio casa de taipa que os fosse preparando para as gerações seguintes. O orgânico, o normal da História é assim… A História não dá saltos. Quando ela os dá, é porque está louca. A História anda. Raras vezes ela corre. É o natural.

Atratividade do Brasil

Os portugueses que tinham vindo para cá e feito fortuna voltavam para Portugal e lá não se acostumavam mais, porque o Brasil tem uma força única de sugar! Quando uma pessoa se habitua a este País, fica mesmo. Ela supõe ter muitas saudades do lugar onde nasceu e, então, volta. Chegando lá, pensa: “Engraçado, isto está meio diferente do que eu deixei…” Em geral, acaba retornando para o Brasil.

Então, esses fidalgos ou comerciantes portugueses tinham casas muito luxuosas e bonitas. Mandavam construir também igrejas magníficas em homenagem ao Rei dos reis e Senhor de todos os que têm senhorio, realmente presente no Santíssimo Sacramento do Altar, ou em honra à Mãe d’Ele ou dos seus servidores, os Santos.

Conheci outrora um Arcebispo que costumava dizer: “A igreja é o palácio dos pobres.” Realmente, suntuosas como são, as igrejas estão abertas dia e noite para os pobres. Eles podem entrar e ficar o tempo que quiserem. Ali se vão civilizando. Antes de tudo, é um meio de prestar culto a Deus. Em segundo lugar, um modo de civilizar. Assim, vai aparecendo algo da civilização europeia, com seu esplendor característico.

Os filhos e netos desses ricaços educavam-se muitas vezes em Coimbra, que era a célula-mãe da cultura portuguesa. A universidade de Portugal por excelência era a de Coimbra. Voltavam formados; eram cientistas, médicos, etc. e, ao mesmo tempo, administradores de fazenda. Ricos, eles construíam belas sedes de fazendas. De maneira que não era mais só na cidade, mas nas fazendas que iam morar; estas eram os tentáculos do luxo, da beleza da vida, que iam penetrando no país e civilizando-o.

Nada disso tinha paralelo com a educação, a pompa, a riqueza, o fausto da corte real. É natural. Era o rei…

Notem que naquele tempo não havia telégrafo, telefone, nenhuma espécie de telecomunicação. As notícias que vinham eram trazidas pelo navio.

(Continua no próximo número)

(Extraído de conferência de 2/11/1985)

1) Cf. Revista Dr. Plinio n. 210, p. 20-25 e n. 211, p. 22-25.